terça-feira, 25 de outubro de 2016

ALGUMAS PESSOAS DEVIAM SER PROIBIDAS DE PARTIR

A morte é um episódio comum e típico que envolve os seres vivos, e nós humanos também estamos sujeitos a ela. Todavia, talvez sejamos nós, humanos, os seres que sobre a morte se debruçam e refletem, ultrapassando os sentimentos mias imediatos que ela nos provoca.
E quiçá a chave da reflexão sobre a morte e a tentativa de compreendê-la como algo que vai além da mera naturalidade existencial de um corpo que cessa seus movimentos seja exatamente o que ela interrompe: a vida.
Durante bom tempo da minha vida, lia o viver em dois matizes:
a) Algumas pessoas vivem a vida tão mecanicamente, sem grandes projetos, sonhos, reflexões, que simplesmente a gastam e deixam com que ela escoe pelas mãos, cumprindo uma trajetória quase imperceptível.
b) Outras pessoas, por sua vez, articulam planos, desenvolvem projetos, transformam sonhos em instituições e realizações, engendrando empreendimentos, marcando e influenciando de forma decisiva e perceptível por todos a trajetória humana no planeta.
Entretanto, há algum tempo venho repensando esta leitura, e uma das responsáveis, além dos meus próprios pais, por esse meu repensar, partiu ontem: minha querida tia Lúcia.
Lúcia era uma pessoa simples, humilde, com pouca escolaridade, mas que transformava cada instante de sua vida em momentos de alegria, com um sorriso maroto e uma picardia de humor sempre dispostos a irromper os ambientes, muitas vezes arejando os contextos pesados e amenizando as situações difíceis. Ela não tinha, ou ao menos não manifestava ter, grandes projetos ou empreendimentos, mas vivia a rotina e o cotidiano sempre dedicada à família e aos afazeres do lar. Tinha suas amizades e procurava se divertir dentro de um horizonte restrito de possibilidades que as dificuldades financeiras impõem à maioria das pessoas, mas neste contexto ela se permitia ser feliz. Guerreira, enfrentou com resiliência e altivez momentos de profunda dor e sofrimento, com a perda trágica de um filho e a morte do marido, além de outros tantos conflitos e batalhas. Enquanto tantos se deixariam derrubar, ela não se permitia tal atitude, mas tratava de transformar dor, sofrimento e amargura em carinho, abnegação, disposição de ajudar, solidariedade com quem precisava mais, partilhando amor como ninguém.
Foi na convivência oportunizada, em 2009, pelo acompanhamento das semanas derradeiras de agonia e morte da minha mãe, que tive contato mais sistemático e intenso com a tia Lúcia. Ela, sempre solícita, fechou a própria casa e se deslocou, “de mala e cuia”, segundo expressão que ela usava na época, para auxiliar-nos a cuidar da minha mãe, que era irmã dela.
Naqueles momentos de conversa, fui apresentado a um grande ser humano, a uma mulher com palavras firmes e sem rodeios, mas com gestos generosos e encantadores, porque dotados de muita doçura, alegria e bom humor, expressões simples do que pode ser a felicidade, em seu mais puro, natural e espontâneo acontecer. O “endurecer-se, sem perder a ternura jamais”, que atribuem a Guevara, passou a ter para mim um sentido prático na trajetória e nas atitudes daquela mulher, a minha tia Lúcia.
Descobri, pois, que pessoas de vida simples e sem grandes projetos ou ambições, assim como você o era, são capazes de transformar o mundo, por compreender que a felicidade pode ser obtida em pequenos momentos e em coisas corriqueiras, desde que descubramos nelas um significado e as olhemos com a grandeza de espírito necessária a quem ama.
Num mundo tão complexo, onde a velocidade, a pressa, a agitação e a celeridade ditam os comportamentos, as coisas, os fatos e as pessoas só conseguem chamar a atenção ou deixar marcas por alguns instantes, de maneira efêmera, e já são superadas pela novidade do momento seguinte.
Assim, possivelmente continuaremos tocando a vida e tentando amenizar a dor da sua partida. Mas saiba, tia Lúcia, onde quer que você esteja, que deveriam aprovar uma lei proibindo algumas pessoas de partir, e você seria incluída nesse rol. Isso porque estas pessoas, e também se aplica a você, são cruciais para que a humanidade ainda tenha alguma esperança de não ser aniquilada, pessoas cujo caráter, honra, solidariedade, humildade, ternura e altruísmo nos servem de bálsamo e alento diante das agruras, pessoas que apontam para um futuro, por mais que eles pareça improvável,  e que desafiam ainda a manutenção de esperanças num mundo melhor.
Quando nos despedíamos, para lhe provocar, eu sempre dizia a você, em alemão, para se comportar e ter juízo, algo que a vó Cecília me dizia quando morou conosco. Você dava uma risada e retrucava dizendo que eu é que devia me comportar e ter juízo. Pois bem, nesta hora eu só posso resumir a minha dor e a minha saudade com esta frase de despedida:
Comporte-se e juízo, hein, tia Lúcia!
Descanse em paz!

domingo, 21 de fevereiro de 2016

Sementes, trabalho e frutos

Semeando I

Hoje, 21 de fevereiro de 2016, colhi as primeiras goiabas lá em casa (vide fotos). Até aí nada de mais, não fosse o fato de que esta árvore surgiu de sementes de uma goiaba plantadas por minha mãe na última vez em que ela esteve aqui em Niterói, no início de 2009.

Já combalida, tomada por um raro e agressivo tipo de câncer, que a vitimou alguns meses depois, ela plantou estas sementes e, sorrindo serenamente, disse naquele momento: “Se você cuidar, eu sei que um dia colherá goiabas aqui”. No próximo dia 28 ela completaria 75 anos, mas poderá ver nem saborear os frutos da convicção que possuía no poder da vida e na força da semente.

Quem a conheceu sabe o quanto ela semeou vida, paz, amor e serenidade entre aqueles com os quais conviveu durante sua passagem pelo mundo. O jeito de viver dela ainda hoje me serve de desafio e inspiração; e vejo em meu irmão alguém que tem atitudes muito similares às que minha mãe possuía.
Por isso, saborear os frutos desta goiabeira passou a ser algo especial, impregnado de significados que estão muito além do ato de consumo.



Semeando II

Hoje, 21 de fevereiro de 2016, completo dez anos como professor da Universidade Federal Fluminense. Deste percurso, a primeira metade foi cumprida junto ao Departamento de Filosofia (GFL), e os últimos cinco anos vinculando meu trabalho ao Departamento de Direito Privado (SDV).
É um dia muito especial, e passou tão rápido! Talvez porque, neste período, não diferente dos anteriores, eu fiz tanta coisa que nem me apercebi que o tempo voou.
Fazendo um apanhado destes anos de UFF (que só com a ajuda do Currículo Lattes, do CNPq, já com 125 páginas, consigo lembrar! rssss):
a) Ajudei a montar um Curso de Graduação em Filosofia;
b) Contribui na discussão que conduziu ao surgimento do Mestrado em Filosofia;
c) Fui subchefe do GFL;
d) Fui Vice-Coordenador e depois Coordenador da Graduação em Filosofia;
e) Participei da elaboração de questões de Filosofia para o vestibular da UFF;
f) Ministrei mais de 70 disciplinas na Graduação (em Curso como Psicologia, Biblioteconomia, Serviço Social, Turismo, Produção Cultural, Estudos de Mídia, Filosofia, Direito);
g) Ministrei mais de 70 disciplinas no Mestrado e no Doutorado em Sociologia e Direito (PPGSD);    
h) Ministrei mais de 20 disciplinas no Mestrado em Justiça Administrativa (PPGJA);
i) Ministrei quase uma dezena de disciplinas em Pós-Graduação Lato Sensu;
j) Ministrei mais de dez cursos de treinamento aos servidores da UFF, e outros tantos para magistrados e professores brasileiros, envolvendo especialmente questões ligadas à ética e à moralidade na gestão pública;
k) Participei de mais de 30 Bancas de Trabalho de Conclusão de Curso (em Filosofia e em Direito);
l) Participei de mais de 150 Bancas de Mestrado (na Instituição e em outras Instituições);
m) Participei de mais de 35 Bancas de Doutorado (na Instituição e em outras Instituições);
n) Participei de mais de 20 Bancas de Concurso Público ou de Seleção de Mestrado e Doutorado;
o) Orientei em torno de 22 alunos em Trabalho de Conclusão de Curso (em Filosofia e em Direito);
p) Orientei em torno de 12 alunos no Mestrado em Sociologia e Direito;
q) Orientei em torno de 8 alunos no Doutorado em Sociologia e Direito;
r) Orientei em torno de 9 alunos no Mestrado em Justiça Administrativa;
s) Participei, como relator, da elaboração do Plano de Desenvolvimento Institucional e do Regimento do SDV;
t) Fiz mais de trinta de pareceres acadêmicos Ad Hoc, para periódicos e publicações, ou técnicos, em Comissões Administrativas da Universidade;
u) Participo de 2 e lidero outros 2 Grupos de Pesquisa cadastrados no CNPq, realizando encontros semanais de estudo ao longo destes anos;
v) Publiquei mais de 50 itens, entre artigos, textos, resumos, capítulos de livros, material didático;
w) Fiz mais de 100 itens, entre palestras, conferências, organização de eventos e comunicações em eventos;
x) Oriento atualmente 9 alunos no Doutorado e 2 no Mestrado do PPGSD, além de 3 no Mestrado do PPGJA e 7 de TCC na Graduação em Direito;
y) Participei da montagem do Projeto de Doutorado em Justiça Administrativa, que foi aprovado recentemente pela CAPES e terá seu início em abril próximo;
z) Assumi a Vice-Coordenação do Doutorado em Justiça Administrativa (novas sementes!).

Xiii, acabou o alfabeto!!!

Creio que lancei muitas sementes que se tornaram lindos frutos, graças às pessoas que cruzaram pela minha trajetória e me permitiram colaborar, de algum modo, nas demandas que possuíam dentro da UFF. Obrigado a todos e a todas por estes dez anos. E que venham outros dez!

Espero ter energia e competência para estar à altura dos desafios que se me apresentam, de sorte a honrar o nome de minha mãe e de meu pai, que acreditavam no poder da vida e na força da semente, e que por isso deixaram muitos frutos, enquanto legado de vida. 

segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

Auf Wiedersehen 2013! Willkommen 2014!

Acabou! O que dava para ser feito, foi feito! Se foi bem feito ou não, se deu o resultado esperado ou não, se valeu a energia despendida ou se ela foi desperdiçada, agora já não importa: 2013 se esgotou. Mais um ano que você e eu vivemos, mais um ciclo da existência que se confirma, mais um tempo que se evaporou por entre as sensações do pulsar dos corpos em constante transformação no espaço.
E o momento é ambíguo, pois envolve sentimentos de tristeza e frustração, intercalados com outros de expectativa e de alegria
A frustração e a tristeza vêm pelas pessoas que partiram, pelas coisas que desejamos e não obtivemos, pelos projetos que lançamos (pro-jectum) e não realizamos, pelas obras que queríamos ler ou escrever e que não nos demos a condição, pela reeducação alimentar que prometemos adotar e que as nossas calorias denunciam não ter sido cumprida, pela palavra que queríamos ter dito e faltou na hora adequada, pela frase dita que merecia não ter sido expressa, pelos “mergulhos retidos que nos deixam estranhas câimbras” (M. Proust).
Mas também vem a expectativa e a alegria, por aquilo que realizamos, por aqueles a quem cativamos e fomos cativados, por aquilo que produzimos e que se torna nossa marca no mundo, pelos que amamos, pelas batalhas que enfrentamos com galhardia e pela paz que conquistamos com esforço, pelos projetos que tiveram sucesso e pelo aprendizado daqueles cujo êxito foi diverso do inicialmente especulado, e pela possibilidade disso continuar a acontecer no ano que se mostra no horizonte.  
Neste ano acumulei doces e amargas lições, que me acompanharão para sempre. E talvez a maior delas seja a de que somos poeira ao vento, ou pouco mais que isso.


Diante de todas as circunstâncias deste ano de 2013, que se mostra nos seus últimos suspiros, só me resta agradecer a possibilidade de estar aqui, vivo e com capacidade de expressar o que penso e o que sinto, graças ao mistério do acontecer humano no Universo.

A Vocês, amigos e amigas, que fizeram parte da minha vida em 2013 e que tornam a vontade de continuar vivendo algo ainda presente em mim, meu carinho, minha gratidão pelo aprendizado que me propiciaram e pelo espaço que me permitiram, num tempo tão escasso e precioso que é o do estar no aí, de transitar pela existência de vocês. 


Feliz 2014 a todos e a todas, com carinho e admiração! 

sexta-feira, 27 de dezembro de 2013

Ode a um gigante que partiu!




VOCÊ ME ELEVA
Você me levanta
Quando eu estou abatido, oh minha alma tão cansada
Quando preocupações surgem e meu coração fica carregado
Então eu me acalmo e espero aqui em silêncio
Até você vir e sentar-se por algum tempo comigo.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros
Você me levanta, mais do que eu posso ser.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros
Você me levanta para ser mais do que eu posso ser.
Não há vida, não há vida sem este desejo
Cada batida do coração impaciente, tão imperfeita
Mas quando você chega, eu me surpreendo
Às vezes, eu acho ter vislumbrado a eternidade.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros
Você me levanta, mais do que eu posso ser.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros

Você me levanta, mais do que eu posso ser.


Ouso interromper o ritmo de trabalho que tenho mantido, em que pese às festas de Natal, deixando a correção de provas e a feitura das médias semestrais das disciplinas, para hoje lançar um brado, numa ode a um gigante que partiu: meu pai. E falo a ele, a partir de agora, fazendo uma homenagem à trajetória que cumpriu na história e que cumpre hoje no coração de cada um de nós:
Hoje, 27 de dezembro, é o teu aniversário, Lotário Hansen; completam-se 74 anos de uma trajetória de muita luta e superação. A pequena Selbach, no interior gaúcho, te viu surgir como alguém que, pelas circunstâncias do zeitgeist, estava fadado a ser mais um na lista de seres humanos comuns, que nascem, crescem, morrem e ninguém se apercebe que viveram, pois não deixam marcas. Sim, porque a maioria das pessoas não ultrapassa o próprio contexto, que se lhe apresenta como barreira inexpugnável, como destino a cumprir.
Deram a ti este nome, sem que houvesse razão poética ou reminiscência ao imperador Lotário (795-855 d.C.), neto de Carlos Magno e legatário do Sacro Império Romano-Germânico; foi apenas uma homenagem a alguém que tinha este nome em tua cidade.
Sétimo filho de uma família de onze irmãos, desde pequeno tu descobriste a dureza da labuta para manter vivos e alimentados a tantos; e logo aprendeste as lides da casa, auxiliando nos trabalhos de limpeza do hotel, na barbearia do meu avô e também no restaurante, ajudando como garçom a servir os hóspedes e clientes.
Na escola ficaste pouco tempo, porque estudar não era percebido como valor naquele período e porque foste expulso do colégio, na quarta série; tudo porque, conforme soube por outros, pediste uma borracha emprestada a um colega e a freira-professora quis coibir tua fala com o colega batendo com uma régua em teus dedos, prática “pedagógica” comum e tolerada à época. A tua reação é que foi incomum, pois quebraste a régua que ela trazia para te bater e pulaste a janela do colégio, fugindo para casa. Isso te rendeu humilhação pública e o chicote do meu avô pegando prá valer, pois ele tinha mão “firme”.  Mas, quer saber, que bom que você não se dobrou! Esta foi a primeira lição que aprendi do teu caminhar: não se dobrar diante da injustiça.
Pois é, mas sem escolaridade, no interior do Rio Grande do Sul (“longe demais das capitais”, como diz a música dos Engenheiros do Hawaii), como construir uma vida? Como manter uma família? Como pensar em futuro?
E tu ousaste, pois conquistou a Lori, a rainha do clube, uma das mulheres mais bonitas da cidade, e foste com teu futuro sogro para Frederico Westphalen; casou com a Lori em 08/02/1964; aprendeu uma profissão, a de alfaiate, e passou a sustentar a família, em cumplicidade com a tua mulher. Momentos difíceis, de muita penúria e dificuldade, né?!
Aqui aprendi contigo outra lição: não desistir do amor da tua vida e ser capaz de ir atrás de um sonho.
Tenho poucas lembranças e algumas fortes sensações ainda deste tempo, pois nasci em março de 1965: lembro de nós dois jogando bola dentro de casa (1967, talvez?!), numa noite de chuva, e eu chutei a bola pela janela; tu correste porta afora para evitar que a bola fosse para um córrego próximo e se perdesse, pois afinal de contas era um dos poucos e melhores brinquedos que eu tinha; e lembro-me da festa que eu, tu e a mãe fizemos quando chegaste com a bola recuperada. No final de 1967, veio o Gilson a nos fazer companhia e eu passei a me sentir o “homenzinho”, a cuidar do frágil bebê.
As coisas estavam cada vez mais difíceis sob o ponto de vista financeiro, e tu cometeste um erro empresarial crucial, fruto da tua bondade e confiança na decência das pessoas: vendeste fiado para o filho do prefeito, então presidente de um dos clubes de futebol da cidade, 25 ternos completos, que seriam presenteados aos jogadores pela conquista do campeonato daquele ano. Para confeccionar isto tudo, tu te endividaste junto aos fornecedores de tecidos, vocês trabalharam intensamente e os ternos foram entregues no prazo (dois dias antes da final do campeonato); o time perdeu, o presidente do clube se negou a pagar os 25 ternos e, num lugarejo onde quem mandava era o prefeito, o padre e o juiz, em pleno regime militar, tu sentiste a força da injustiça promovida pelas autoridades constituídas; ameaçado de morte pelo filho do prefeito, sob a conivência corrupta de um magistrado, só restou a ti e à mãe juntar os “trapos”, os filhos e recomeçar em outra cidade (Carazinho); eu tinha três anos de idade e o Gilson, três meses.
Disso outra lição eu aprendi: a nós, pobres, a injustiça é a companhia; para encontrar um lugar ao sol e superar a injustiça, somente com tenacidade, disciplina e competência; não dá para ser mais um, tem de ser o melhor, o mais determinado, o moralmente mais forte.
Por quase dez anos tu e a mãe ficaram a pagar as dívidas advindas deste sucedido; e isso tornava a nossa sobrevivência bastante precária. Lembro-me de alguns episódios que me marcaram profundamente nesta época (fim dos anos 1960 até meados dos anos 1970): o primeiro deles é que morávamos perto do tio Nelson e que a tia Elita ficava, junto com minha mãe, esperando o cacarejar das galinhas, pois este era o sinal de que alguma havia botado um ovo e aquele ovo era doado a nós para que pudéssemos ter bolinho na refeição; nova lição aprendida, qual seja, a força da solidariedade. Outro momento que lembro era de como tu e a mãe nos serviam o feijão e o arroz, e após eu e o Gilson almoçarmos, vocês acrescentarem água e comerem aquilo, pois não havia o suficiente. Vem também a minha retina a imagem da tua chegada do trabalho, curvando-te de dor proveniente de gastrite, pelo excesso de trabalho, preocupações e má alimentação; mas sempre sobrava um carinho e um tempinho para sentar junto ao fogão à lenha e nos pegar no colo, aconchegando-nos num casaco de inverno. Eis mais uma lição, a de que as adversidades não podem nos matar a ternura.
Na ocasião do Natal, a firma onde tu trabalhavas dava uma cesta de Natal aos funcionários, com chocolates e também um engradado de refrigerantes: eu e o Gilson comíamos um pedacinho de chocolate por dia, para que não acabasse logo; idem para o refrigerante, pois repartíamos um por semana, na expectativa de que tivéssemos tal bebida por mais tempo.
Destes momentos de penúria, recordo também da alegria que ficávamos quando, na nossa santa ilusão, acreditávamos que o Papai Noel nos deixava os presentes, ou o Coelho da Páscoa nos deixava casquinhas de ovos recheadas com amendoins. E os presentes, modestos, eram sempre iguais, pois o modelo do carrinho de plástico de 5 reais era verde para um e amarelo para o outro, de sorte que eu e o Gilson sempre recebíamos presente similar. Mas o que importava é que tu e a mãe conosco sentavam e brincavam durante horas, de sorte que nossa infância foi feliz. Novas lições assimiladas: simplicidade, cumplicidade, parceria, valorização daquilo que se tem, por mínimo que seja, e das pessoas que te propiciam o acesso a isso.
Aos poucos vocês foram economizando e compraram uma casa velha (mas era nossa! E isso era muito bom!); e quando esta foi paga, aí vocês partiram para construir uma casa melhor. Foram anos de muita batalha também, pois todos nós trabalhávamos de auxiliares dos pedreiros e marceneiros, para baratear a construção.
E assim, superando obstáculo após obstáculo, não sem dificuldade ou adversidade, vocês pavimentaram uma estrada que permitiu a mim e ao Gilson o acesso ao estudo e às oportunidades de, pelo nosso trabalho, construirmos o nosso próprio lugar no mundo. Vocês, meu querido pai, transcenderam todas as expectativas e conjunturas, foram muito além das “montanhas” do vilarejo onde nasceram e se transformaram em gigantes. Tal como diz a música, tornaram-se gigantes que nos colocaram sobre os ombros e nos permitiram ver longe, para que pudéssemos redimensionar a nossa própria noção de horizontes.
E não bastassem os ensinamentos todos que vocês nos passaram ao longo do tempo, nestes últimos cinco anos trouxeram as mais profundas, marcantes e difíceis lições de assimilar. A partir de 2008, a luta da mãe contra um câncer arrebatador e agressivo, que a levou em 15/11/2009, não sem provações, dor e sofrimento. De lá para cá, tu nos ensinaste o quão dolorosa é a saudade de alguém que se ama e que partiu, pois a partida da mãe te foi um golpe insuperável e que foi te matando aos poucos, sem que pudéssemos fazer nada como alento. Mas tivemos, tu e nós (eu, Gilson, Júnior), as derradeiras lições de tua trajetória terrena quando, em final de maio do corrente, sofreste um Acidente Vascular Cerebral e ficaste paralisado do teu lado esquerdo.
De repente nos demos conta que tu, sempre dinâmico e disposto, que jogou futsal até quase os 65 anos de vida e que parecia uma fortaleza de saúde, também era suscetível aos desígnios da natureza e, por capricho do destino, tornou-se por algumas semanas o nosso “filho”, posto que tivemos de aprender a trocar tuas fraldas, a dar banho em ti, a cortar tua barba, a te carregar no colo. Mas tu não estavas disposto a aceitar passivamente esta imposição da freira-natureza, e quebrou a régua dela, quando começou a fazer fisioterapia e, em menos de 15 dias, dava sinais de recuperar os movimentos e o controle sobre o próprio corpo. A physis (natureza), em conluio com Cronos (o tempo), decidiu então te atingir com novo AVC, em 14 de junho passado; rebelde e inconformado, tu decidiste pular a janela, e seguiu acompanhado de um anjo de luz, chamado Lori, que te esperava.
Desde então, um abismo se abriu em nossas almas, na minha e do Gilson; mas também um vazio ficou na existência dos teus netos e daqueles que contigo conviveram. Desde a tua partida, muitas foram as ocasiões nas quais, no domingo à noite, vi-me com o telefone à mão, para ligar para ti, pai. E toda a vez que faço churrasco, eu ouço dos seus netos a frase: “seu churrasco é bom, mas não tão bom quanto o do vô Lotário”.

Tu e a mãe construíram um lar, uma família, um ethos, um clã; mas vocês saíram da sala cedo demais e agora me vejo aqui, como brincamos entre nós, legatário e patriarca de um “clã” de cinco pessoas (eu, Gilson e os netos de vocês). Como estar à altura dos ensinamentos e legados de vocês? Como se tornar um gigante para permitir que os ombros sirvam de anteparo e plataforma para que outros possam vislumbrar horizontes mais distantes e promissores? Esta lição, pai, tu deixaste sem responder. Espero ser digno do teu nome e ter amor e força suficiente dentro de mim para encontrar e viver a resposta. Feliz aniversário, pai, onde quer que você esteja, de que forma que você esteja! 

quarta-feira, 13 de março de 2013

HABEMUS PAPAM!


A escolha de Jorge Mário Bergoglio, Cardeal Arcebispo de Buenos Aires, para assumir a função de Bispo de Roma e, nesta condição, tornar-se o novo Papa da Igreja Católica Apostólica Romana, surpreendeu a todos e contrariou apostas e torcidas.
Igual surpresa ocorreu pela definição do nome adotado pelo novo Pontífice, a partir de agora denominado Francisco. A mídia brasileira, em sua grande maioria mobilizada e abobalhada em face da torcida pelo Cardeal brasileiro, Odilo Scherer, imediatamente conectou o nome escolhido a Francisco de Assis. Exatamente porque, na condição de torcedora, a imprensa não cogitava um Papa sul-americano que não fosse o Bispo de São Paulo, e sequer se deu conta que o fato de Bergoglio ser da Companhia de Jesus, o primeiro dentre os jesuítas a chegar ao papado desde a fundação da referida Instituição religiosa (1534), remete a escolha do seu nome de Papa a São Francisco Xavier, um dos fundadores da Companhia de Jesus.
E que importância tem isso?
Segundo a tradição da Igreja Católica, o nome é selecionado pelo novo Pontífice e significa um diapasão a sinalizar a direção política do seu governo. Se a referência fosse o Francisco de Assis, apontaria para um projeto de Igreja voltada aos pobres, preocupada com o combate às injustiças e à miséria. Já a lembrança de Francisco Xavier remete ao missionário de uma Ordem fundada sob parâmetros militares e encarregada da expansão do Cristianismo pelas Américas e pelo oriente, pela evangelização e catequização, aliada às forças europeias que conquistaram e subjugaram as colônias a partir do século XIV.
Para qual Igreja apontará o Pontificado de Francisco? Alguns indicativos de seu currículo são importantes para vislumbrarmos tendências.
Pairam desconfianças sobre o envolvimento de Bertoglio, ou ao menos sobre o seu silêncio, no tocante ao período da ditadura militar argentina e as atrocidades cometidas pelos governantes nesta época.
Em período mais recente, tornaram-se conhecidas suas manifestações contra a Presidente Cristina Kirchner pelo fato desta ter apoiado a possibilidade do casamento homo-afetivo em plagas portenhas. Ademais, seus discursos contrários ao aborto, mesmo em situações de estupro, também marcaram os momentos mais recentes de suas aparições no cenário político do país vizinho.
Por outro lado, paralelo a esta postura conservadora e dogmática, digna da atuação originária jesuíta, sua preocupação com a pastoral e sua manifestação contra a miséria e a exploração dos pobres mostra uma figura atenta aos explorados e excluídos da sociedade.
Outro ponto favorável a Bergoglio parece ser a forma humilde e amável de se colocar junto ao povo, retratada pelo seu estilo de vida frugal e simples, e expressa já nas primeiras ações enquanto Papa, pedindo ao povo presente na Praça do Vaticano uma primeira oração de bênção sobre o seu Pontificado. O gesto de curvar-se em silêncio para ouvir essa oração-bênção popular soa como a busca por legitimação da soberania popular para uma autoridade institucional de abrangência mundial.
As características de Bergoglio supracitadas lembram em boa parte as características de Karol Woytila quando assumiu, sob a desconfiança do mundo, o seu Pontificado; com um jeito comunicativo e cativante, João Paulo II logo caiu na simpatia do povo, pois parecia o avô que todos nós queríamos ter em casa. Mas a conduta política de João Paulo II sempre foi conservadora e forte no que tange à manutenção da tradição da Igreja.
Bergoglio foi eleito pelos Cardeais numa batalha entre o grupo dos detentores do poder vaticano e aqueles que não mais os queriam no poder.  As especulações apontam para o fato de que Ratzinger trombara contra os primeiros e por causa da força destes optou pela renúncia.  Os primeiros tinham no italiano Ângelo Scola o seu expoente maior e no Cardeal Scherer um escudeiro fiel que se transformou em “boi de piranha” na campanha de desconstrução promovida pela imprensa italiana, criticado que foi pelas gafes e pela postura política.
Neste cenário de duro confronto, o Cardeal Arcebispo de Tegucigalpa/Honduras, Óscar Rodríguez Maradiaga, salesiano que preside a Cáritas Internacional desde 2007 e que goza de grande prestígio entre os Cardeais, se revelou como o grande articulador da candidatura de Bergoglio. O Argentino, cogitado como o candidato anti-Ratzinger quando da escolha deste como Bento XVI, voltou á cena como opção e alternativa política, pois representa a novidade sem mudanças drásticas. E na Igreja Católica (talvez nas Igrejas como um todo), a máxima mais praticada pode ser traduzida na expressão do escritor italiano Giuseppe Tomasi di Lampedusa (1896-1957) “tudo deve mudar para que tudo fique como está”.
Resta-nos aguardar e observar que Francisco vai inspirar ao novo Papa: o de Assis ou o Xavier. Teremos um Papa junto do povo, dos humildes e dos pobres, com uma Igreja que o acompanhe nessa perspectiva? Ou teremos um conquistador de fiéis com fala mansa, carismático nos gestos e conservador nos discursos e nas decisões políticas? Meu palpite é que o Xavier é mais forte; afinal de contas, jesuíta é jesuíta, heri et hodie et in perpetuum.

sábado, 9 de março de 2013

A VIDA EM NÚMEROS OU AS RAZÕES DO MEU CANSAÇO


Desde o início do mês de março, com os prazos institucionais se esgotando, tive de preencher o Currículo Lattes, do CNPq, e a partir dele o Relatório de Atividades Docentes (RAD), instrumento administrativo utilizado para aferir se um docente efetivamente trabalhou no ano anterior, uma espécie de Imposto de Renda Pessoa Física das atividades acadêmicas.
Ao preencher tais instrumentos de controle, fui forçado a juntar os comprovantes das atividades guardados nas estantes e gavetas. E somente assim pude me aperceber das razões pelas quais me encontro com tamanho cansaço.
No RAD são previstas 3120 horas de atividades; quando você ultrapassa esse total o sistema não aceita a inserção dos dados. Extrapolei isso em 2012 em mais de 200 horas, segundo os critérios institucionais.
Todavia, pressupondo que tivéssemos produzido as horas estabelecidas como teto no sistema informatizado, isso significa que há uma previsão média de 8,5 horas diárias de trabalho; e se considerarmos apenas 30 dias de férias, esta carga sobe para 9,3 horas diárias.
Como é possível isso? Simples: basta sacrificar sábados, domingos, feriados, férias, lazer, exercícios físicos. É o que acabei fazendo para dar conta das atividades e compromissos assumidos (Bancas, orientações de graduação, mestrado, doutorado, iniciação científica, eventos a organizar e a participar, publicações, aulas, etc.).
E o resultado disso é compensador?
Sob o ponto de vista funcional, não! – recebemos a mesma remuneração de quem faz muito menos.
Sob o ponto de vista físico, não! – ficamos um bagaço humano, estressados, cansados, estafados física e mentalmente.
Sob o ponto de vista do relacionamento humano, sim! – poder participar da vida das pessoas e dos momentos importantes para elas (uma Banca Examinadora, por exemplo); poder auxiliar na caminhada nem sempre clara ou facilmente vislumbrada pelo orientando (numa orientação de Iniciação Científica, Monitoria, TCC, Dissertação ou Tese); poder chegar até as pessoas e dividir com elas a compreensão de determinados problemas sociais sob uma perspectiva crítica (num livro, capítulo de livro ou artigo; numa aula, palestra ou curso de extensão); poder estar com os colegas e aprender com eles, na cúmplice troca de idéias dos Grupos de Pesquisa. Isso tudo é que acaba por tornar compensador tamanho esforço.
Os dados de 2012 (04 Grupos de Pesquisa; apresentação de trabalhos em eventos nacionais e internacionais; oito disciplinas na Graduação; oito disciplinas na Pós-Graduação; dois livros organizados e publicados; cinco capítulos de livro; um prefácio de livro; um artigo em periódico Qualis; seis orientações de doutorandos; onze orientações de mestrandos; uma orientação de graduando de Iniciação Científica; cinco orientações defendidas; vinte e duas bancas de Mestrado e de Doutorado) retratam o tamanho do meu cansaço.
Entretanto, estes números dizem muito mais que isso, pois revelam a alegria de alguém que se sente realizado naquilo que faz e que está disposto a continuar fazendo o que gosta.
Portanto, grato àqueles e àquelas com quem pude trabalhar em 2012. E continuem contando comigo em 2013, pois quando eu aposentar ou “cantar prá subir” (rssss), aí haverá tempo suficiente para o devido descanso! But not now, not yet!!!


MOMENTOS MÁGICOS, ONTEM E HOJE


Foram três semanas extremamente carregadas de atividades, que culminaram com o preenchimento do Relatório de Atividades Docentes (prazo-limite no dia 08/03) e com a atualização do Currículo Lattes (para o relatório trienal da CAPES). Entremeadas a estas atividades, ocorreram ainda aulas na Graduação e na Pós-Graduação, seleção de Mestrado e de Doutorado do PPGSD, seleção de Mestrado no PPGJA, orientações de dissertações e teses, bancas de dissertações e de teses, reuniões dos Grupos de Pesquisas nos quais estou inserido. Ah, e existem os compromissos familiares, não menos significativos e exigentes de tempo.
Enfim, chego neste dia 09 de março exausto, mas gasto um pouco do meu tempo e da minha energia hoje para registrar dois momentos especiais ocorridos no último dia 01 de março.

Momento 01: A primeira defesa de tese do PSGSD da UFF
Neste dia aconteceu a primeira defesa de tese do doutorado do Curso de Ciências Jurídicas e Sociais (popularmente conhecido como PPGSD ou “Sociologia e Direito”), levada a cabo pelo aluno Eder Fernandes Monica, sob minha orientação. O referido discente fez um ótimo trabalho, que ganha maior relevância se levarmos em conta que ele, por questões de foro pessoal, decidiu escrever e defender sua tese cumprindo o prazo mínimo definido pela CAPES (dois anos) e não utilizou os quatro anos dos quais a maioria dos discentes doutorandos se vale para concluir seu Curso.
Para dar conta desta empreitada, Eder sacrificou horas de sono e de lazer, canalizando grande parte do seu tempo ao longo dos últimos dois anos, especialmente nos seis meses que antecederam a defesa, para a construção da tese. E eu, enquanto orientador, também enfrentei o “rescaldo” desta situação (rssss), com um acompanhamento bastante intenso ao longo do processo.
O coroamento desta caminhada se deu com a Banca Examinadora, formada pelos professores doutores Luís Antonio Cunha Ribeiro, Luiz Antonio da Silva Peixoto, Gustavo da Silveira Siqueira e Marcus Fabiano Gonçalves. Estes grandes professores e pesquisadores deram um show de competência, cada uma abordando sob uma ótica o tema da tese e apresentando questionamentos, observações, que foram assimiladas, respondidas e saboreadas; sim, este é o termo: saboreadas; pois na origem da palavra conhecimento está o sentido de informação (sapere), mas também de sabor (sapore). Todos os professores foram brilhantes, mas a intervenção do colega Marcus Fabiano foi digna de uma Aula Magna em qualquer Universidade do mundo.
A platéia que compareceu e acompanhou as quase cinco horas do ritual da defesa teve a oportunidade de testemunhar um momento raro, especial na vida de uma Universidade, que retrata o significado maior da Academia enquanto produtora de conhecimento crítico sobre, com e para a sociedade. Quem lá esteve vivenciou um momento ímpar e certamente saiu sabendo qual é a diferença entre uma Universidade e um “colegião”, destes que comercializam cursos e certificados como se estivessem vendendo fast food. Fizemos história na Universidade Federal Fluminense no último 01 de março de 2013; fizemos Universidade.

Momento 2: 28 anos de Magistério
Em 01 de março último, no anonimato e na discrição que uma data destas tem na vida pública, posto que seja lembrada somente pelo seu protagonista, comemorei 28 anos de magistério, sendo 27 anos de magistério superior.
Em 01 de março do distante ano de 1985, um jovem idealista de 19 anos de idade (completei 20 anos alguns dias depois deste fato), começou a lecionar OSPB, História e Religião, no Colégio Marista de Passo Fundo, para alunos de 7ª e 8ª séries do 1º e para alunos do 2º Grau.
Lembro-me que, no primeiro dia de aula, cheguei tenso, mão fria e úmida, boca e garganta secas, corpo totalmente aceso, como se estivesse prestes a um combate. Eu havia passado os três meses antecedentes preparando todas as aulas, com dedicação de quase 8 horas diárias; as duas semanas que antecederam a estréia foram dedicadas a ensaio na frente do espelho, a revisão de cada detalhe, para que tudo transcorresse bem. Mas a noite anterior foi passada sem dormir, tamanha a tensão e expectativa: e se os alunos não gostassem de mim e do meu jeito de ministrar aulas? E se fizessem uma pergunta que eu não soubesse responder? E se eu esquecesse algum conceito que devia abordar na aula? Enfim, estreei e deu tudo certo! E a coisa fluiu tão bem que surgiu, no ano seguinte, o convite para lecionar na Universidade de Passo Fundo, onde havia me formado.
Para dar conta das aulas na Universidade, deixei de lecionar no Colégio Marista, trocando às trinta horas em sala de aula por dezesseis horas na UPF. E eu ficava os horários nos quais não estava em sala de aula estudando e preparando as aulas para cumprir bem o meu papel.
Coincidência ou não, em 01 de março de 1986, com vinte anos, comecei minha jornada de professor universitário, lecionando Metodologia Científica e Introdução à Filosofia para diversos Cursos da Universidade. Embora com a pouca experiência de magistério do ano anterior, igualmente a adrenalina se fez presente na estréia e nos meses que se sucederam. O cenário era outro, pois encontrava em alguns Cursos pessoas inclusive bem mais velhas e experientes que eu. Como manter a atenção e o interesse deles naquilo que eu trabalhava? Como fazer com que um jovem que mal havia entrado no Curso de Agronomia e que queria fazer análise de solo e aprender técnicas de manejo agrícola pudesse se voltar, ao menos por duas horas na semana, para discutir filosofia ou para aprender as normas da ABNT (contidas na ementa de Metodologia Científica)? E essa dúvida me acompanhava também na Educação Física, na Geografia, na Engenharia Mecânica, na Enfermagem, na Medicina, cursos para quem eu lecionei nos primeiros semestres.
Eu, que havia sido seminarista e que, ao deixar a trajetória rumo ao sacerdócio, por acaso, me vi guindado à situação de professor, mantendo minhas despesas com isso, pensava naquele momento: eu não estou preparado para entrar, nos próximos trinta anos, e lecionar sempre o mesmo conteúdo, repetindo a mesma ementa, de forma burocrática. Comecei a cogitar, nas primeiras semanas de aula, a possibilidade de arrumar outro emprego e investir noutra carreira.
Todavia, passado cerca de um mês de aula, lembro-me de estar lecionando a disciplina de Introdução à Filosofia no Curso de Educação Física quando, ao trabalhar alguns conceitos ligados ao existencialismo (angústia, consciência, vida e morte, etc.) fiz alguns comentários e percebi que, ao fundo da sala, uma aluna começou a chorar discretamente. Conversei com ela ao final e ela me agradeceu porque falei coisas que a levaram a compreender melhor uma dada situação existencial pela qual passava e que a angustiava. Não recordo o nome dela, talvez fosse Rosa (parafraseando Humberto Eco em “O nome da rosa”), mas devo boa parte do que sou a este momento por ela protagonizado, pois foi a partir deste momento que descobri o encanto disso que faço e que me apaixonei pelo que faço.
Nestes anos todos, ainda que a ementa fosse a mesma, jamais ministrei a mesma aula; pois as pessoas para as quais ministrei as disciplinas eram diferentes, tinham dúvidas, expectativas, concepções, vivências distintas. E eu me apercebi que esta coisa chamada magistério é mágica, pois nós mexemos com a sensibilidade, com as emoções, com o humor das pessoas, e somos marcados por elas de igual maneira. E lá se vão 28 anos desde a primeira vez!
De lá para cá me aperfeiçoei, estudei, aprendi, acertei e errei, mas vivi intensamente o que escolhi como profissão e, mais do que isso, abracei como projeto de vida.
A defesa do Eder é um importante capítulo nesta minha caminhada, momento mágico numa trajetória nem sempre fácil ou compreendida. Que bom que pude estar presente e testemunhar a conquista de mais um grande pesquisador, de alguém que parece também ter decidido abraçar o magistério e que começa a consolidar a própria caminhada enquanto docente universitário.
Um dia 01 de março e dois momentos mágicos na vida de um gaúcho, gremista e livre pensador. Obrigado a todos aqueles e aquelas que tornaram possíveis estes dois momentos mágicos em minha existência.