segunda-feira, 1 de outubro de 2012

O TABULEIRO DE XADREZ E O TABULEIRO DA VIDA



O Xadrez é disputado num tabuleiro quadrado de 64 casas, sobre o qual as peças se movimentam e se confrontam. Este tabuleiro bem pode traduzir, em metáfora, os movimentos de um “tabuleiro” mais complexo: a vida em sociedade.
Primeiramente, é necessário, contudo, explicitar aos não iniciados no Xadrez a lógica do jogo e os principais movimentos no tabuleiro.
A lógica do jogo consiste na proteção ao Rei, peça central que se move para todos os lados, apesar de ter seus movimentos “lentos”, já que se desloca de casa em casa; a captura do Rei implica no fim do jogo, razão pela qual ele deve ser protegido a qualquer custo, ainda que com o sacrifício de qualquer outra peça. No tabuleiro, a Rainha é a segunda em importância, pois tem todos os movimentos do Rei, mas um deslocamento quase pleno, já que pode percorrer várias casas num só movimento; é a peça que, bem utilizada, se torna a mais forte no tabuleiro, tanto na proteção ao Rei e às demais peças quanto no ataque às peças adversárias. A Torre (com movimentos em linha reta), o Bispo (com movimentos oblíquos) e o Cavalo (com movimentos em “L” e possibilidade de pular sobre as peças) têm mobilidade maior que o Rei, em termos de potencial de distância percorrida, mas possuem limitações de movimentos que este não possui; são peças de proteção e de ataque, a depender das circunstâncias do jogo. Os peões, por sua vez, servem de primeira defesa às peças do jogador e de vanguarda de ataque às peças do oponente, movendo-se somente para frente e de casa em casa; a única hipótese de modificação de rota ocorre quando ele captura uma peça adversária (de forma oblíqua, passando a seguir em linha reta a partir do lugar onde a peça capturada estava). Em situações raras, quando não capturado e chegando ao fim do percurso (primeira casa do campo adversário), o peão transmuta sua natureza e pode se converter em qualquer outra peça, exceto o Rei.
As estratégias do jogo de Xadrez são voltadas, por conseguinte, para a captura do Rei adversário e para a proteção do próprio Rei. E tais estratégias se mostram mais ou menos eficazes e eficientes à medida que o oponente vacila, dá espaços, faz escolhas equivocadas, perde o controle ou algo nesta direção; igualmente isso vale para a ação do jogador.


O Xadrez e a política: duas metáforas

Das metáforas que permite o Xadrez, as relacionadas à política são as mais profícuas. E me vejo aqui a tergiversar sobre duas metáforas que o último final de semana de setembro trouxe à baila.

Movimento 1: Rainha se move para ajudar Rei a salvar Torre

Assim poderia ser descrito, em linguagem do Xadrez, o movimento que levou a Presidenta Dilma Roussef a gastar seu tempo numa peregrinação paulistana ao longo do último final de semana. Luís Inácio Lula da Silva necessitava do seu auxílio e socorro para alavancar a candidatura petista à Prefeitura de São Paulo, colando tal candidatura no prestígio que Dilma hoje apresenta junto à população, segundo os dados dos Institutos de Pesquisa. Isso porque o protegido de Lula não consegue, até o momento, fazer frente às demais candidaturas. Outrora idolatrado pela população, o prestígio Lula parece ter sido afetado por três fatores significativos: 1º) Não está mais diretamente no poder maior da nação; 2º) Tem sua imagem arranhada pelas suspeitas de seu vínculo com os episódios do “mensalão”; 3º) Foi sucedido na Presidência da República por uma estadista administrativamente mais competente.  
O primeiro fator é significativo em termos políticos, especialmente no Brasil, onde há uma cultura política ainda personalista. Assim, quem tem a caneta na mão e assina os papéis decisivos tem mais força política; aparentemente, Lula está longe da “caneta”, o que torna a sua força menos perceptível no meio do cidadão comum.
O segundo fator assume importância à proporção que, sob os holofotes da mídia, o julgamento do “mensalão” (ou, de no eufemismo, Ação Penal 470, como preferem os simpatizantes do referido esquema de corrupção) ocupa os noticiários e traz à tona a condenação e a imputação de responsabilidades aos personagens do dileto ciclo de amizades de Lula. Embora o ex-presidente tivesse afirmado desconhecer todo o esquema de corrupção, não é essa a sinalização que brota do julgamento do STF; tanto é assim que, há alguns dias, o Procurador Geral da República aventou a possibilidade de, no futuro, incluir o nome de Lula em investigações decorrentes do “mensalão”. Diante desta manifestação, imediatamente houve movimentação de peças no tabuleiro (partidos da “base aliada” ao governo, por exemplo) para “blindar” a figura do ex-presidente, pois a turma do “deixa disso” precisa garantir, a qualquer custo, que o Rei não receba xeque-mate.
O terceiro fator diz respeito, em grande parte, às virtudes da atual governanta-mor da nação, uma vez que Lula encontrou uma sucessora com maior capacidade de se portar enquanto estadista, já que reúne habilidades de gestão administrativa da máquina governamental superiores a ele. A sensação que passa a quem olha “de fora” do governo é a de confiança pelo controle gerencial que se mostra bem mais intenso atualmente no âmbito do governo federal. Lula, segundo depoimento de amigos meus que conviveram com ele ao longo do tempo, tem um carisma impressionante e uma grande capacidade de convencimento. Isso foi importante, no governo dele, para pavimentar uma credibilidade política, especialmente no exterior. Todavia, o ex-presidente pouco permanecia em Brasília e tinha, quando lá estava, uma agenda carregada de compromissos políticos, mas pouco tomada com questões administrativas. Este não parece ser o perfil de Dilma, que transmite a impressão de ter maior senso do que está a fazer, sob o aspecto administrativo-gerencial, ainda que careça de flexibilidade política em episódios que extrapolem a funcionalidade da máquina administrativa, como é o caso das greves no setor público.
E graças a estes fatores todos é que o Rei, fragilizado, recorreu à Rainha para salvar a Torre e, ao salvar a Torre, fortalecer-se novamente no jogo. O que virá deste movimento de peças: continuidade do jogo ou xeque-mate? Somente o tempo dirá.
  
Movimento 2: Os peões são movidos para trancar e empatar o jogo

Acompanhei, pelo G1, o debate dos candidatos à Prefeitura de Niterói. A metáfora do Xadrez se torna mais complexa porque eram vários tabuleiros e várias partidas sendo jogadas ao mesmo tempo. Entretanto, algumas observações sobre o movimento das peças são possíveis:
a) Dos quatro candidatos presentes, três deles apresentam vinculação a interesses políticos e a máquinas partidárias bastante pesadas, contando com o apoio de políticos de carreira cujo currículo está muito mais próximo de uma FAC (Folha de Antecedentes Criminais) do que de um Lattes (Curriculum Vitae do CNPq). Estes apoios, ao mesmo tempo em que fortalecem a captação de votos nos currais eleitorais, trazem desconforto no palco midiático, posto que nem sempre sejam companhias desejáveis para quem faz um discurso da transparência, da ética, da justiça, da eficiência, da igualdade, do bem comum ou do interesse público. É nesta ambiguidade movediça que três candidatos tiveram que construir sua performance.
b) Para evitar a “areia movediça” dos vínculos eleitorais e eleitoreiros, e já que ambos têm “telhado de vidro”, não poderiam ser “estilingues” e a estratégia utilizada pelos três candidatos foi a neutralização dos discursos, fator que implicou duas atitudes: na crítica aos demais candidatos, uma polidez mordaz, para não transparecer agressividade ou destempero ao eleitor, mas ainda assim cutucar o outro e dizer subliminarmente a ele “eu sei o que você fez ontem”; na apresentação de propostas, informações genéricas, imprecisas e pouco divergentes. Exemplar é o último bloco do debate, denominado pinga-fogo, onde nitidamente um ficava monitorando a resposta do outro e a acompanhava, havendo pouquíssima divergência entre os três candidatos; era o movimento dos peões, posicionados de forma articulada para trancar o jogo e conduzi-lo ao empate. É a política em seu mais puro e rasteiro exemplo de estratégia para a obtenção do poder e de sua conservação, não importando aí fatores como moralidade, justiça, bem comum ou interesse público. Resultado final deste jogo: empate, - pois cada um colheu aquilo que desejava ou imaginava poder obter naquelas circunstâncias. E a militância de cada um deles repercute nas redes sociais a vitória no debate, na ilusão de que isso convença aos desavisados.
Mas eu mencionei três candidatos. Não eram quatro os debatedores? Não são quatro os candidatos? Sim, há um quarto candidato, que merece um tratamento à parte, em face da postura que assumiu no jogo político e do movimento de peças que faz no tabuleiro.
c) O quarto candidato deve ter, certamente, pretensões de vencer as eleições e chegar ao poder político municipal, especialmente se os demais oponentes derem espaço para isso no movimento de peças que promovem. Entretanto, o quarto candidato tem sua proposta estruturada em torno de um apoio partidário de menor expressão nacional, em termos de máquina eleitoral. Parece, então, ter definido o período eleitoral como oportunidade de exposição de um projeto alternativo de sociedade, a qual é encampada como postura político-partidária, com vistas à obtenção de maior adesão social e aumento do potencial eleitoral para pleitos vindouros. Em face deste horizonte de possíveis pretensões, o referido candidato se moveu de maneira muito mais propositiva e segura, utilizando o espaço para expor as ações que pretende realizar. Igualmente se postou de maneira diferenciada na última fase do debate, quando divergiu em boa parte dos demais candidatos, especialmente no que tange às questões ambientais (contrário à fusão de reserva ambiental estadual com reserva municipal), de saúde pública (contrário à internação compulsória de consumidores de drogas como o crack), de apoio às questões de gênero (favorável ao investimento municipal à passeata do movimento gay) e de segurança pública (contrário à contratação de policiais militares em hora de folgas para fazer a segurança pública municipal), justificando na fala final porque adota tais posturas. Concordemos ou não com as posições e razões assumidas pelo quarto candidato, o fato é que ele assumiu posições e apresentou razões para elas. Neste sentido, acredito que igualmente atingiu os propósitos que possuía. E os militantes que o apóiam saíram do debate com renovada motivação, pois interpretaram, não sem razão, sob um dado aspecto, ter sido ele o melhor no debate.
Algumas questões parecem brotar enquanto incógnitas, a serem deslindadas em breve tempo: qual o alcance e a repercussão do debate? Num debate realizado via internet, num sábado, em horário de audiência baixa, quantos foram atingidos e impactados? Certo, o acesso pode ser feito a qualquer hora, gravado no site G1; mas que público teve e tem acesso a isso e o que este público significa no quantum eleitoral do município? Pode-se falar em vencedores e perdedores de um debate onde me parece que todos atingiram os objetivos almejados e não vacilaram a ponto de deixar margem para serem bombardeados pelos demais?
Todos jogaram bem, dentro das estratégias escolhidas: três foram opacos e empataram; o quarto jogou melhor, foi mais transparente, mas está diante do desafio hercúleo de superar a velha máxima esportiva que acompanha alguns clubes e alguns partidos: “jogou como nunca, perdeu como sempre”.
Quem perdeu? Perdeu quem não assistiu; perde a sociedade toda a vez que restringe o espaço de debate, optando por passar na TV seriados e novelas absolutamente alienantes e irrelevantes, que perpetuam no enredo novelesco o destino do Peão, sacrificado, iludido e mortificado durante 170 capítulos, mas redimido no último capítulo da novela, o 171, transmutando-se em Rainha, em Torre, em Bispo ou em Cavalo, jamais em Rei, porque o protagonismo é para os escolhidos, os eleitos, e isso é inacessível ao Peão.
Quem ganhou? Ganhou a democracia, enquanto espaço do debate acerca das razões que movem um ser humano em suas palavras e ações, silêncios e omissões: os candidatos puderam apresentar as suas razões, de forma coerente ou não, valendo-se de estratégia ou não, mas se expondo publicamente com razões. Somente este exercício democrático contínuo, sistemático e permanente poderá desenvolver uma cultura política que nos leve ao estranhamento quando alguém, no exercício de função, cargo ou mandato públicos, ousar achar que não tem de dar satisfações à sociedade sobre seus atos. E esse lento gestar de uma cultura política democrática participativo-argumentativa se apresenta, com todos os percalços e tensões, avanços e retrocessos nela possíveis, como condição de possibilidade de uma cidadania ativa, cosmopolita e solidária.

De ambas as metáforas entre a política e o Xadrez, assimilo como lição e convicção ao fato de que, se há um caminho para que a política não seja um jogo de Xadrez mecanicamente executado, onde lógica e estratégia servem de desculpas para a falta de sinceridade, para a hipocrisia, para a mentira deslavada repetida tantas vezes que se pretende aceitável socialmente, este caminho passa pela prática da democracia em todas as instâncias e instituições.
Ao contrário do que os marqueteiros e cabos eleitorais de plantão apregoam, partilhamos com Immanuel Kant a convicção de que política e moralidade são compatíveis, mesmo que olhemos para as práticas políticas cotidianas e para os debates políticos hoje travados e ainda vejamos nestes um distanciamento com relação ao coadunar de política e moralidade.
Esse distanciamento factual entre política e moralidade não deve ser encarado como um fosso intransponível, mas se converter num élan vital que nos desinstale da zona de conforto de nossa rotina e nos transforme em militantes da contrafactualidade, da luta pela democracia. O tabuleiro está posto, as regras do jogo estão presentes, o cenário está dado: resta-nos jogar. “Temos um jogo!”   

O XADREZ: UMA ODE À CAPACIDADE HUMANA


Sou um admirador de quem sabe jogar Xadrez, pois considero a este como um dos jogos mais representativos e desafiadores da capacidade racional humana, desenvolvendo habilidades subjetivas e intersubjetivas a partir de um contexto objetivo.
Há uma objetividade no Xadrez, marcada pela meta que, aos apressados e incautos, pode parecer ser a mera conquista da vitória numa partida, mas que vai muito além disso.
Em nome desta objetividade, assim como há quem veja no Xadrez apenas um jogo cujo objetivo é vencer a partida, há também quem queira reduzir o jogo ao simples cálculo computacional e lógico de possibilidades de movimentos de peças, de forma fria e asséptica, destituída de qualquer emoção ou aprendizado.
Um enxadrista é colocado inicialmente numa disputa consigo mesmo, subjetiva, posto que se lhe impingem exigências como concentração, atenção, visão periférica e holística do tabuleiro (para que perceba a movimentação das peças), planejamento de jogadas, avaliação de cenários e de possibilidades lógicas, versatilidade diante das contingências do jogo, decisão firme, ousada ou conservadora, diante das circunstâncias do jogo. Mas igualmente lhe são testadas o controle da ansiedade, a reação emotiva diante das adversidades, o medo, a tranqüilidade, o descuido, a capacidade de vencer e de perder, a euforia ou a decepção diante dos resultados.
Todavia, no Xadrez há fundamental e primordialmente um sentido intersubjetivo, a começar pelo fato de que há um “outro” com o qual eu jogo e que se volta contra mim na circunstância lúdica (adversário => “ad” = para; + “vertere” = voltar-se, virar). Conhecer este outro, estar atento a ele, observar seus movimentos e reações, compreender suas estratégias e a lógica dos seus movimentos, “ler” as suas atitudes, eis um grande desafio que se apresenta e que implica em ver o outro, estimar o outro, valorizar o outro, reconhecer a grandeza e a dignidade do outro enquanto pessoa.
Ademais, além de enfrentar-se a um oponente no jogo, há para ambos a presença de regras e procedimentos inafastáveis, pois são republicanamente anteriores àquele jogo e servem de parâmetro a todo e qualquer jogo de Xadrez, numa universalidade que extrapola cor, sexo, idade, etnia, fatores econômicos, religião, geografia ou política.
As regras e procedimentos com validade universal, contudo, não engessam a criatividade ou a individualidade, que se mostram no desenrolar da própria partida, nas decisões, movimentos, estratégias e ações dos participantes.
Outro aspecto primordial que deve ser levado em conta é o caráter lúdico do Xadrez: é um jogo! E isso significa, dentre outras coisas, que permite o lazer, a descontração, a convivência, a leveza da vida nesta “insustentável leveza do ser”. Há no jogo uma inutilidade e na inutilidade uma resistência à redução do humano ao “que serve para algo”, que pode ser usado em todas as circunstâncias; afinal de contas, como dizia a banda Ultraje a Rigor, em música épica, “a gente somos inútil”.
Mas o fato de ser inútil não torna o Xadrez sem significado ou importância; muito ao contrário, ele é uma imensa oportunidade de aprendizado para as demais atividades e dimensões da existência humana, constituindo-se num manancial de metáforas e lições, aplicáveis aos diferentes campos da sociedade.
Por tudo isso, o Xadrez tem como finalidade muito mais do que a simples vitória numa contenda entre dois oponentes, mas a possibilidade de desenvolvimento do maior atributo que a natureza nos legou, a capacidade racional de um ser sensorial. No Xadrez, como diria o comentarista da ESPN Paulo Antunes, “temos um jogo!”