VOCÊ ME ELEVA
Você me levanta
Quando eu estou abatido, oh minha alma tão cansada
Quando preocupações surgem e meu coração fica
carregado
Então eu me acalmo e espero aqui em silêncio
Até você vir e sentar-se por algum tempo comigo.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé
sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros
Você me levanta, mais do que eu posso ser.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé
sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros
Você me levanta para ser mais do que eu posso ser.
Não há vida, não há vida sem este desejo
Cada batida do coração impaciente, tão imperfeita
Mas quando você chega, eu me surpreendo
Às vezes, eu acho ter vislumbrado a eternidade.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé
sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros
Você me levanta, mais do que eu posso ser.
Você me levanta de modo que eu posso ficar em pé
sobre montanhas
Você me levanta para andar em mares tempestuosos
Eu sou forte quando estou em seus ombros
Você me levanta, mais do que eu posso ser.
Ouso interromper
o ritmo de trabalho que tenho mantido, em que pese às festas de Natal, deixando
a correção de provas e a feitura das médias semestrais das disciplinas, para
hoje lançar um brado, numa ode a um gigante que partiu: meu pai. E falo a ele,
a partir de agora, fazendo uma homenagem à trajetória que cumpriu na história e
que cumpre hoje no coração de cada um de nós:
Hoje, 27 de
dezembro, é o teu aniversário, Lotário Hansen; completam-se 74 anos de uma
trajetória de muita luta e superação. A pequena Selbach, no interior gaúcho, te
viu surgir como alguém que, pelas circunstâncias do zeitgeist, estava fadado a ser mais um na lista de seres humanos comuns,
que nascem, crescem, morrem e ninguém se apercebe que viveram, pois não deixam
marcas. Sim, porque a maioria das pessoas não ultrapassa o próprio contexto,
que se lhe apresenta como barreira inexpugnável, como destino a cumprir.
Deram a ti este nome,
sem que houvesse razão poética ou reminiscência ao imperador Lotário (795-855
d.C.), neto de Carlos Magno e legatário do Sacro Império Romano-Germânico; foi
apenas uma homenagem a alguém que tinha este nome em tua cidade.
Sétimo filho de
uma família de onze irmãos, desde pequeno tu descobriste a dureza da labuta para
manter vivos e alimentados a tantos; e logo aprendeste as lides da casa,
auxiliando nos trabalhos de limpeza do hotel, na barbearia do meu avô e também
no restaurante, ajudando como garçom a servir os hóspedes e clientes.
Na escola
ficaste pouco tempo, porque estudar não era percebido como valor naquele período
e porque foste expulso do colégio, na quarta série; tudo porque, conforme soube
por outros, pediste uma borracha emprestada a um colega e a freira-professora quis
coibir tua fala com o colega batendo com uma régua em teus dedos, prática “pedagógica”
comum e tolerada à época. A tua reação é que foi incomum, pois quebraste a
régua que ela trazia para te bater e pulaste a janela do colégio, fugindo para
casa. Isso te rendeu humilhação pública e o chicote do meu avô pegando prá
valer, pois ele tinha mão “firme”. Mas,
quer saber, que bom que você não se dobrou! Esta foi a primeira lição que
aprendi do teu caminhar: não se dobrar diante da injustiça.
Pois é, mas sem
escolaridade, no interior do Rio Grande do Sul (“longe demais das capitais”,
como diz a música dos Engenheiros do Hawaii), como construir uma vida? Como
manter uma família? Como pensar em futuro?
E tu ousaste,
pois conquistou a Lori, a rainha do clube, uma das mulheres mais bonitas da
cidade, e foste com teu futuro sogro para Frederico Westphalen; casou com a
Lori em 08/02/1964; aprendeu uma profissão, a de alfaiate, e passou a sustentar
a família, em cumplicidade com a tua mulher. Momentos difíceis, de muita
penúria e dificuldade, né?!
Aqui aprendi
contigo outra lição: não desistir do amor da tua vida e ser capaz de ir atrás
de um sonho.
Tenho poucas
lembranças e algumas fortes sensações ainda deste tempo, pois nasci em março de
1965: lembro de nós dois jogando bola dentro de casa (1967, talvez?!), numa
noite de chuva, e eu chutei a bola pela janela; tu correste porta afora para
evitar que a bola fosse para um córrego próximo e se perdesse, pois afinal de
contas era um dos poucos e melhores brinquedos que eu tinha; e lembro-me da
festa que eu, tu e a mãe fizemos quando chegaste com a bola recuperada. No
final de 1967, veio o Gilson a nos fazer companhia e eu passei a me sentir o “homenzinho”,
a cuidar do frágil bebê.
As coisas
estavam cada vez mais difíceis sob o ponto de vista financeiro, e tu cometeste
um erro empresarial crucial, fruto da tua bondade e confiança na decência das
pessoas: vendeste fiado para o filho do prefeito, então presidente de um dos
clubes de futebol da cidade, 25 ternos completos, que seriam presenteados aos
jogadores pela conquista do campeonato daquele ano. Para confeccionar isto
tudo, tu te endividaste junto aos fornecedores de tecidos, vocês trabalharam
intensamente e os ternos foram entregues no prazo (dois dias antes da final do
campeonato); o time perdeu, o presidente do clube se negou a pagar os 25 ternos
e, num lugarejo onde quem mandava era o prefeito, o padre e o juiz, em pleno
regime militar, tu sentiste a força da injustiça promovida pelas autoridades
constituídas; ameaçado de morte pelo filho do prefeito, sob a conivência corrupta
de um magistrado, só restou a ti e à mãe juntar os “trapos”, os filhos e
recomeçar em outra cidade (Carazinho); eu tinha três anos de idade e o Gilson,
três meses.
Disso outra
lição eu aprendi: a nós, pobres, a injustiça é a companhia; para encontrar um
lugar ao sol e superar a injustiça, somente com tenacidade, disciplina e
competência; não dá para ser mais um, tem de ser o melhor, o mais determinado,
o moralmente mais forte.
Por quase dez
anos tu e a mãe ficaram a pagar as dívidas advindas deste sucedido; e isso
tornava a nossa sobrevivência bastante precária. Lembro-me de alguns episódios
que me marcaram profundamente nesta época (fim dos anos 1960 até meados dos
anos 1970): o primeiro deles é que morávamos perto do tio Nelson e que a tia
Elita ficava, junto com minha mãe, esperando o cacarejar das galinhas, pois
este era o sinal de que alguma havia botado um ovo e aquele ovo era doado a nós
para que pudéssemos ter bolinho na refeição; nova lição aprendida, qual seja, a
força da solidariedade. Outro momento que lembro era de como tu e a mãe nos
serviam o feijão e o arroz, e após eu e o Gilson almoçarmos, vocês
acrescentarem água e comerem aquilo, pois não havia o suficiente. Vem também a
minha retina a imagem da tua chegada do trabalho, curvando-te de dor
proveniente de gastrite, pelo excesso de trabalho, preocupações e má
alimentação; mas sempre sobrava um carinho e um tempinho para sentar junto ao
fogão à lenha e nos pegar no colo, aconchegando-nos num casaco de inverno. Eis
mais uma lição, a de que as adversidades não podem nos matar a ternura.
Na ocasião do Natal,
a firma onde tu trabalhavas dava uma cesta de Natal aos funcionários, com
chocolates e também um engradado de refrigerantes: eu e o Gilson comíamos um
pedacinho de chocolate por dia, para que não acabasse logo; idem para o
refrigerante, pois repartíamos um por semana, na expectativa de que tivéssemos tal
bebida por mais tempo.
Destes momentos
de penúria, recordo também da alegria que ficávamos quando, na nossa santa
ilusão, acreditávamos que o Papai Noel nos deixava os presentes, ou o Coelho da
Páscoa nos deixava casquinhas de ovos recheadas com amendoins. E os presentes,
modestos, eram sempre iguais, pois o modelo do carrinho de plástico de 5 reais
era verde para um e amarelo para o outro, de sorte que eu e o Gilson sempre
recebíamos presente similar. Mas o que importava é que tu e a mãe conosco sentavam
e brincavam durante horas, de sorte que nossa infância foi feliz. Novas lições
assimiladas: simplicidade, cumplicidade, parceria, valorização daquilo que se
tem, por mínimo que seja, e das pessoas que te propiciam o acesso a isso.
Aos poucos vocês
foram economizando e compraram uma casa velha (mas era nossa! E isso era muito
bom!); e quando esta foi paga, aí vocês partiram para construir uma casa melhor.
Foram anos de muita batalha também, pois todos nós trabalhávamos de auxiliares
dos pedreiros e marceneiros, para baratear a construção.
E assim,
superando obstáculo após obstáculo, não sem dificuldade ou adversidade, vocês pavimentaram
uma estrada que permitiu a mim e ao Gilson o acesso ao estudo e às
oportunidades de, pelo nosso trabalho, construirmos o nosso próprio lugar no
mundo. Vocês, meu querido pai, transcenderam todas as expectativas e
conjunturas, foram muito além das “montanhas” do vilarejo onde nasceram e se transformaram
em gigantes. Tal como diz a música, tornaram-se gigantes que nos colocaram sobre
os ombros e nos permitiram ver longe, para que pudéssemos redimensionar a nossa
própria noção de horizontes.
E não bastassem os
ensinamentos todos que vocês nos passaram ao longo do tempo, nestes últimos
cinco anos trouxeram as mais profundas, marcantes e difíceis lições de assimilar.
A partir de 2008, a luta da mãe contra um câncer arrebatador e agressivo, que a
levou em 15/11/2009, não sem provações, dor e sofrimento. De lá para cá, tu nos
ensinaste o quão dolorosa é a saudade de alguém que se ama e que partiu, pois a
partida da mãe te foi um golpe insuperável e que foi te matando aos poucos, sem
que pudéssemos fazer nada como alento. Mas tivemos, tu e nós (eu, Gilson,
Júnior), as derradeiras lições de tua trajetória terrena quando, em final de
maio do corrente, sofreste um Acidente Vascular Cerebral e ficaste paralisado
do teu lado esquerdo.
De repente nos
demos conta que tu, sempre dinâmico e disposto, que jogou futsal até quase os
65 anos de vida e que parecia uma fortaleza de saúde, também era suscetível aos
desígnios da natureza e, por capricho do destino, tornou-se por algumas semanas
o nosso “filho”, posto que tivemos de aprender a trocar tuas fraldas, a dar
banho em ti, a cortar tua barba, a te carregar no colo. Mas tu não estavas disposto
a aceitar passivamente esta imposição da freira-natureza, e quebrou a régua
dela, quando começou a fazer fisioterapia e, em menos de 15 dias, dava sinais
de recuperar os movimentos e o controle sobre o próprio corpo. A physis (natureza), em conluio com Cronos (o tempo), decidiu então te
atingir com novo AVC, em 14 de junho passado; rebelde e inconformado, tu
decidiste pular a janela, e seguiu acompanhado de um anjo de luz, chamado Lori,
que te esperava.
Desde então, um
abismo se abriu em nossas almas, na minha e do Gilson; mas também um vazio
ficou na existência dos teus netos e daqueles que contigo conviveram. Desde a
tua partida, muitas foram as ocasiões nas quais, no domingo à noite, vi-me com
o telefone à mão, para ligar para ti, pai. E toda a vez que faço churrasco, eu ouço
dos seus netos a frase: “seu churrasco é bom, mas não tão bom quanto o do vô
Lotário”.
Tu e a mãe
construíram um lar, uma família, um ethos,
um clã; mas vocês saíram da sala cedo demais e agora me vejo aqui, como
brincamos entre nós, legatário e patriarca de um “clã” de cinco pessoas (eu,
Gilson e os netos de vocês). Como estar à altura dos ensinamentos e legados de
vocês? Como se tornar um gigante para permitir que os ombros sirvam de anteparo
e plataforma para que outros possam vislumbrar horizontes mais distantes e
promissores? Esta lição, pai, tu deixaste sem responder. Espero ser digno do
teu nome e ter amor e força suficiente dentro de mim para encontrar e viver a
resposta. Feliz aniversário, pai, onde quer que você esteja, de que forma que
você esteja!