O Xadrez é
disputado num tabuleiro quadrado de 64 casas, sobre o qual as peças se
movimentam e se confrontam. Este tabuleiro bem pode traduzir, em metáfora, os
movimentos de um “tabuleiro” mais complexo: a vida em sociedade.
Primeiramente, é
necessário, contudo, explicitar aos não iniciados no Xadrez a lógica do jogo e
os principais movimentos no tabuleiro.
A lógica do jogo
consiste na proteção ao Rei, peça central que se move para todos os lados,
apesar de ter seus movimentos “lentos”, já que se desloca de casa em casa; a
captura do Rei implica no fim do jogo, razão pela qual ele deve ser protegido a
qualquer custo, ainda que com o sacrifício de qualquer outra peça. No
tabuleiro, a Rainha é a segunda em importância, pois tem todos os movimentos do
Rei, mas um deslocamento quase pleno, já que pode percorrer várias casas num só
movimento; é a peça que, bem utilizada, se torna a mais forte no tabuleiro,
tanto na proteção ao Rei e às demais peças quanto no ataque às peças
adversárias. A Torre (com movimentos em linha reta), o Bispo (com movimentos
oblíquos) e o Cavalo (com movimentos em “L” e possibilidade de pular sobre as
peças) têm mobilidade maior que o Rei, em termos de potencial de distância
percorrida, mas possuem limitações de movimentos que este não possui; são peças
de proteção e de ataque, a depender das circunstâncias do jogo. Os peões, por
sua vez, servem de primeira defesa às peças do jogador e de vanguarda de ataque
às peças do oponente, movendo-se somente para frente e de casa em casa; a única
hipótese de modificação de rota ocorre quando ele captura uma peça adversária
(de forma oblíqua, passando a seguir em linha reta a partir do lugar onde a
peça capturada estava). Em situações raras, quando não capturado e chegando ao
fim do percurso (primeira casa do campo adversário), o peão transmuta sua
natureza e pode se converter em qualquer outra peça, exceto o Rei.
As estratégias
do jogo de Xadrez são voltadas, por conseguinte, para a captura do Rei
adversário e para a proteção do próprio Rei. E tais estratégias se mostram mais
ou menos eficazes e eficientes à medida que o oponente vacila, dá espaços, faz
escolhas equivocadas, perde o controle ou algo nesta direção; igualmente isso
vale para a ação do jogador.
O Xadrez e a política: duas metáforas
Das metáforas
que permite o Xadrez, as relacionadas à política são as mais profícuas. E me
vejo aqui a tergiversar sobre duas metáforas que o último final de semana de
setembro trouxe à baila.
Movimento 1: Rainha se move para ajudar Rei a salvar Torre
Assim poderia
ser descrito, em linguagem do Xadrez, o movimento que levou a Presidenta Dilma
Roussef a gastar seu tempo numa peregrinação paulistana ao longo do último
final de semana. Luís Inácio Lula da Silva necessitava do seu auxílio e socorro
para alavancar a candidatura petista à Prefeitura de São Paulo, colando tal
candidatura no prestígio que Dilma hoje apresenta junto à população, segundo os
dados dos Institutos de Pesquisa. Isso porque o protegido de Lula não consegue,
até o momento, fazer frente às demais candidaturas. Outrora idolatrado pela
população, o prestígio Lula parece ter sido afetado por três fatores
significativos: 1º) Não está mais diretamente no poder maior da nação; 2º) Tem
sua imagem arranhada pelas suspeitas de seu vínculo com os episódios do
“mensalão”; 3º) Foi sucedido na Presidência da República por uma estadista
administrativamente mais competente.
O primeiro fator
é significativo em termos políticos, especialmente no Brasil, onde há uma
cultura política ainda personalista. Assim, quem tem a caneta na mão e assina
os papéis decisivos tem mais força política; aparentemente, Lula está longe da
“caneta”, o que torna a sua força menos perceptível no meio do cidadão comum.
O segundo fator
assume importância à proporção que, sob os holofotes da mídia, o julgamento do
“mensalão” (ou, de no eufemismo, Ação Penal 470, como preferem os simpatizantes
do referido esquema de corrupção) ocupa os noticiários e traz à tona a
condenação e a imputação de responsabilidades aos personagens do dileto ciclo
de amizades de Lula. Embora o ex-presidente tivesse afirmado desconhecer todo o
esquema de corrupção, não é essa a sinalização que brota do julgamento do STF;
tanto é assim que, há alguns dias, o Procurador Geral da República aventou a
possibilidade de, no futuro, incluir o nome de Lula em investigações
decorrentes do “mensalão”. Diante desta manifestação, imediatamente houve
movimentação de peças no tabuleiro (partidos da “base aliada” ao governo, por
exemplo) para “blindar” a figura do ex-presidente, pois a turma do “deixa
disso” precisa garantir, a qualquer custo, que o Rei não receba xeque-mate.
O terceiro fator
diz respeito, em grande parte, às virtudes da atual governanta-mor da nação,
uma vez que Lula encontrou uma sucessora com maior capacidade de se portar
enquanto estadista, já que reúne habilidades de gestão administrativa da
máquina governamental superiores a ele. A sensação que passa a quem olha “de
fora” do governo é a de confiança pelo controle gerencial que se mostra bem mais
intenso atualmente no âmbito do governo federal. Lula, segundo depoimento de
amigos meus que conviveram com ele ao longo do tempo, tem um carisma impressionante
e uma grande capacidade de convencimento. Isso foi importante, no governo dele,
para pavimentar uma credibilidade política, especialmente no exterior. Todavia,
o ex-presidente pouco permanecia em Brasília e tinha, quando lá estava, uma
agenda carregada de compromissos políticos, mas pouco tomada com questões
administrativas. Este não parece ser o perfil de Dilma, que transmite a
impressão de ter maior senso do que está a fazer, sob o aspecto
administrativo-gerencial, ainda que careça de flexibilidade política em
episódios que extrapolem a funcionalidade da máquina administrativa, como é o
caso das greves no setor público.
E graças a estes
fatores todos é que o Rei, fragilizado, recorreu à Rainha para salvar a Torre
e, ao salvar a Torre, fortalecer-se novamente no jogo. O que virá deste
movimento de peças: continuidade do jogo ou xeque-mate? Somente o tempo dirá.
Movimento 2: Os peões são movidos para trancar e empatar
o jogo
Acompanhei, pelo
G1, o debate dos candidatos à Prefeitura de Niterói. A metáfora do Xadrez se
torna mais complexa porque eram vários tabuleiros e várias partidas sendo
jogadas ao mesmo tempo. Entretanto, algumas observações sobre o movimento das
peças são possíveis:
a) Dos quatro
candidatos presentes, três deles apresentam vinculação a interesses políticos e
a máquinas partidárias bastante pesadas, contando com o apoio de políticos de
carreira cujo currículo está muito mais próximo de uma FAC (Folha de
Antecedentes Criminais) do que de um Lattes (Curriculum Vitae do CNPq). Estes apoios, ao mesmo tempo em que
fortalecem a captação de votos nos currais eleitorais, trazem desconforto no
palco midiático, posto que nem sempre sejam companhias desejáveis para quem faz
um discurso da transparência, da ética, da justiça, da eficiência, da
igualdade, do bem comum ou do interesse público. É nesta ambiguidade movediça
que três candidatos tiveram que construir sua performance.
b) Para evitar a
“areia movediça” dos vínculos eleitorais e eleitoreiros, e já que ambos têm
“telhado de vidro”, não poderiam ser “estilingues” e a estratégia utilizada
pelos três candidatos foi a neutralização dos discursos, fator que implicou
duas atitudes: na crítica aos demais candidatos, uma polidez mordaz, para não
transparecer agressividade ou destempero ao eleitor, mas ainda assim cutucar o
outro e dizer subliminarmente a ele “eu sei o que você fez ontem”; na
apresentação de propostas, informações genéricas, imprecisas e pouco
divergentes. Exemplar é o último bloco do debate, denominado pinga-fogo, onde
nitidamente um ficava monitorando a resposta do outro e a acompanhava, havendo
pouquíssima divergência entre os três candidatos; era o movimento dos peões,
posicionados de forma articulada para trancar o jogo e conduzi-lo ao empate. É
a política em seu mais puro e rasteiro exemplo de estratégia para a obtenção do
poder e de sua conservação, não importando aí fatores como moralidade, justiça,
bem comum ou interesse público. Resultado final deste jogo: empate, - pois cada
um colheu aquilo que desejava ou imaginava poder obter naquelas circunstâncias.
E a militância de cada um deles repercute nas redes sociais a vitória no
debate, na ilusão de que isso convença aos desavisados.
Mas eu mencionei
três candidatos. Não eram quatro os debatedores? Não são quatro os candidatos?
Sim, há um quarto candidato, que merece um tratamento à parte, em face da
postura que assumiu no jogo político e do movimento de peças que faz no
tabuleiro.
c) O quarto
candidato deve ter, certamente, pretensões de vencer as eleições e chegar ao
poder político municipal, especialmente se os demais oponentes derem espaço
para isso no movimento de peças que promovem. Entretanto, o quarto candidato
tem sua proposta estruturada em torno de um apoio partidário de menor expressão
nacional, em termos de máquina eleitoral. Parece, então, ter definido o período
eleitoral como oportunidade de exposição de um projeto alternativo de
sociedade, a qual é encampada como postura político-partidária, com vistas à
obtenção de maior adesão social e aumento do potencial eleitoral para pleitos
vindouros. Em face deste horizonte de possíveis pretensões, o referido
candidato se moveu de maneira muito mais propositiva e segura, utilizando o
espaço para expor as ações que pretende realizar. Igualmente se postou de
maneira diferenciada na última fase do debate, quando divergiu em boa parte dos
demais candidatos, especialmente no que tange às questões ambientais (contrário
à fusão de reserva ambiental estadual com reserva municipal), de saúde pública
(contrário à internação compulsória de consumidores de drogas como o crack), de apoio às questões de gênero
(favorável ao investimento municipal à passeata do movimento gay) e de segurança pública (contrário à
contratação de policiais militares em hora de folgas para fazer a segurança
pública municipal), justificando na fala final porque adota tais posturas.
Concordemos ou não com as posições e razões assumidas pelo quarto candidato, o
fato é que ele assumiu posições e apresentou razões para elas. Neste sentido,
acredito que igualmente atingiu os propósitos que possuía. E os militantes que
o apóiam saíram do debate com renovada motivação, pois interpretaram, não sem
razão, sob um dado aspecto, ter sido ele o melhor no debate.
Algumas questões
parecem brotar enquanto incógnitas, a serem deslindadas em breve tempo: qual o
alcance e a repercussão do debate? Num debate realizado via internet, num
sábado, em horário de audiência baixa, quantos foram atingidos e impactados?
Certo, o acesso pode ser feito a qualquer hora, gravado no site G1; mas que
público teve e tem acesso a isso e o que este público significa no quantum eleitoral do município? Pode-se
falar em vencedores e perdedores de um debate onde me parece que todos
atingiram os objetivos almejados e não vacilaram a ponto de deixar margem para
serem bombardeados pelos demais?
Todos jogaram
bem, dentro das estratégias escolhidas: três foram opacos e empataram; o quarto
jogou melhor, foi mais transparente, mas está diante do desafio hercúleo de
superar a velha máxima esportiva que acompanha alguns clubes e alguns partidos:
“jogou como nunca, perdeu como sempre”.
Quem perdeu?
Perdeu quem não assistiu; perde a sociedade toda a vez que restringe o espaço
de debate, optando por passar na TV seriados e novelas absolutamente alienantes
e irrelevantes, que perpetuam no enredo novelesco o destino do Peão,
sacrificado, iludido e mortificado durante 170 capítulos, mas redimido no
último capítulo da novela, o 171, transmutando-se em Rainha, em Torre, em Bispo
ou em Cavalo, jamais em Rei, porque o protagonismo é para os escolhidos, os
eleitos, e isso é inacessível ao Peão.
Quem ganhou? Ganhou
a democracia, enquanto espaço do debate acerca das razões que movem um ser
humano em suas palavras e ações, silêncios e omissões: os candidatos puderam
apresentar as suas razões, de forma coerente ou não, valendo-se de estratégia
ou não, mas se expondo publicamente com razões. Somente este exercício
democrático contínuo, sistemático e permanente poderá desenvolver uma cultura
política que nos leve ao estranhamento quando alguém, no exercício de função,
cargo ou mandato públicos, ousar achar que não tem de dar satisfações à
sociedade sobre seus atos. E esse lento gestar de uma cultura política
democrática participativo-argumentativa se apresenta, com todos os percalços e
tensões, avanços e retrocessos nela possíveis, como condição de possibilidade
de uma cidadania ativa, cosmopolita e solidária.
De ambas as
metáforas entre a política e o Xadrez, assimilo como lição e convicção ao fato
de que, se há um caminho para que a política não seja um jogo de Xadrez
mecanicamente executado, onde lógica e estratégia servem de desculpas para a
falta de sinceridade, para a hipocrisia, para a mentira deslavada repetida
tantas vezes que se pretende aceitável socialmente, este caminho passa pela
prática da democracia em todas as instâncias e instituições.
Ao contrário do
que os marqueteiros e cabos eleitorais de plantão apregoam, partilhamos com
Immanuel Kant a convicção de que política e moralidade são compatíveis, mesmo
que olhemos para as práticas políticas cotidianas e para os debates políticos
hoje travados e ainda vejamos nestes um distanciamento com relação ao coadunar
de política e moralidade.
Esse
distanciamento factual entre política e moralidade não deve ser encarado como
um fosso intransponível, mas se converter num élan vital que nos desinstale da zona de conforto de nossa rotina e
nos transforme em militantes da contrafactualidade, da luta pela democracia. O
tabuleiro está posto, as regras do jogo estão presentes, o cenário está dado:
resta-nos jogar. “Temos um jogo!”