A morte é um
episódio comum e típico que envolve os seres vivos, e nós humanos também
estamos sujeitos a ela. Todavia, talvez sejamos nós, humanos, os seres que
sobre a morte se debruçam e refletem, ultrapassando os sentimentos mias
imediatos que ela nos provoca.
E quiçá a chave
da reflexão sobre a morte e a tentativa de compreendê-la como algo que vai além
da mera naturalidade existencial de um corpo que cessa seus movimentos seja
exatamente o que ela interrompe: a vida.
Durante bom
tempo da minha vida, lia o viver em dois matizes:
a) Algumas pessoas vivem a vida tão mecanicamente,
sem grandes projetos, sonhos, reflexões, que simplesmente a gastam e deixam com
que ela escoe pelas mãos, cumprindo uma trajetória quase imperceptível.
b) Outras pessoas, por sua vez,
articulam planos, desenvolvem projetos, transformam sonhos em instituições e
realizações, engendrando empreendimentos, marcando e influenciando de forma
decisiva e perceptível por todos a trajetória humana no planeta.
Entretanto, há
algum tempo venho repensando esta leitura, e uma das responsáveis, além dos
meus próprios pais, por esse meu repensar, partiu ontem: minha querida tia
Lúcia.
Lúcia era uma
pessoa simples, humilde, com pouca escolaridade, mas que transformava cada
instante de sua vida em momentos de alegria, com um sorriso maroto e uma
picardia de humor sempre dispostos a irromper os ambientes, muitas vezes
arejando os contextos pesados e amenizando as situações difíceis. Ela não
tinha, ou ao menos não manifestava ter, grandes projetos ou empreendimentos, mas
vivia a rotina e o cotidiano sempre dedicada à família e aos afazeres do lar.
Tinha suas amizades e procurava se divertir dentro de um horizonte restrito de
possibilidades que as dificuldades financeiras impõem à maioria das pessoas,
mas neste contexto ela se permitia ser feliz. Guerreira, enfrentou com
resiliência e altivez momentos de profunda dor e sofrimento, com a perda
trágica de um filho e a morte do marido, além de outros tantos conflitos e
batalhas. Enquanto tantos se deixariam derrubar, ela não se permitia tal
atitude, mas tratava de transformar dor, sofrimento e amargura em carinho,
abnegação, disposição de ajudar, solidariedade com quem precisava mais,
partilhando amor como ninguém.
Foi na convivência
oportunizada, em 2009, pelo acompanhamento das semanas derradeiras de agonia e
morte da minha mãe, que tive contato mais sistemático e intenso com a tia Lúcia.
Ela, sempre solícita, fechou a própria casa e se deslocou, “de mala e cuia”,
segundo expressão que ela usava na época, para auxiliar-nos a cuidar da minha mãe,
que era irmã dela.
Naqueles
momentos de conversa, fui apresentado a um grande ser humano, a uma mulher com
palavras firmes e sem rodeios, mas com gestos generosos e encantadores, porque
dotados de muita doçura, alegria e bom humor, expressões simples do que pode
ser a felicidade, em seu mais puro, natural e espontâneo acontecer. O “endurecer-se,
sem perder a ternura jamais”, que atribuem a Guevara, passou a ter para mim um
sentido prático na trajetória e nas atitudes daquela mulher, a minha tia Lúcia.
Descobri, pois, que
pessoas de vida simples e sem grandes projetos ou ambições, assim como você o
era, são capazes de transformar o mundo, por compreender que a felicidade pode
ser obtida em pequenos momentos e em coisas corriqueiras, desde que descubramos
nelas um significado e as olhemos com a grandeza de espírito necessária a quem
ama.
Num mundo tão
complexo, onde a velocidade, a pressa, a agitação e a celeridade ditam os
comportamentos, as coisas, os fatos e as pessoas só conseguem chamar a atenção
ou deixar marcas por alguns instantes, de maneira efêmera, e já são superadas
pela novidade do momento seguinte.
Assim,
possivelmente continuaremos tocando a vida e tentando amenizar a dor da sua
partida. Mas saiba, tia Lúcia, onde quer que você esteja, que deveriam aprovar
uma lei proibindo algumas pessoas de partir, e você seria incluída nesse rol.
Isso porque estas pessoas, e também se aplica a você, são cruciais para que a
humanidade ainda tenha alguma esperança de não ser aniquilada, pessoas cujo
caráter, honra, solidariedade, humildade, ternura e altruísmo nos servem de
bálsamo e alento diante das agruras, pessoas que apontam para um futuro, por
mais que eles pareça improvável, e que
desafiam ainda a manutenção de esperanças num mundo melhor.
Quando nos despedíamos,
para lhe provocar, eu sempre dizia a você, em alemão, para se comportar e ter
juízo, algo que a vó Cecília me dizia quando morou conosco. Você dava uma risada e retrucava dizendo que eu é que devia me comportar
e ter juízo. Pois bem, nesta hora eu só posso resumir a minha dor e a minha saudade com esta frase de despedida:
Comporte-se e
juízo, hein, tia Lúcia!
Descanse em paz!