terça-feira, 25 de outubro de 2016

ALGUMAS PESSOAS DEVIAM SER PROIBIDAS DE PARTIR

A morte é um episódio comum e típico que envolve os seres vivos, e nós humanos também estamos sujeitos a ela. Todavia, talvez sejamos nós, humanos, os seres que sobre a morte se debruçam e refletem, ultrapassando os sentimentos mias imediatos que ela nos provoca.
E quiçá a chave da reflexão sobre a morte e a tentativa de compreendê-la como algo que vai além da mera naturalidade existencial de um corpo que cessa seus movimentos seja exatamente o que ela interrompe: a vida.
Durante bom tempo da minha vida, lia o viver em dois matizes:
a) Algumas pessoas vivem a vida tão mecanicamente, sem grandes projetos, sonhos, reflexões, que simplesmente a gastam e deixam com que ela escoe pelas mãos, cumprindo uma trajetória quase imperceptível.
b) Outras pessoas, por sua vez, articulam planos, desenvolvem projetos, transformam sonhos em instituições e realizações, engendrando empreendimentos, marcando e influenciando de forma decisiva e perceptível por todos a trajetória humana no planeta.
Entretanto, há algum tempo venho repensando esta leitura, e uma das responsáveis, além dos meus próprios pais, por esse meu repensar, partiu ontem: minha querida tia Lúcia.
Lúcia era uma pessoa simples, humilde, com pouca escolaridade, mas que transformava cada instante de sua vida em momentos de alegria, com um sorriso maroto e uma picardia de humor sempre dispostos a irromper os ambientes, muitas vezes arejando os contextos pesados e amenizando as situações difíceis. Ela não tinha, ou ao menos não manifestava ter, grandes projetos ou empreendimentos, mas vivia a rotina e o cotidiano sempre dedicada à família e aos afazeres do lar. Tinha suas amizades e procurava se divertir dentro de um horizonte restrito de possibilidades que as dificuldades financeiras impõem à maioria das pessoas, mas neste contexto ela se permitia ser feliz. Guerreira, enfrentou com resiliência e altivez momentos de profunda dor e sofrimento, com a perda trágica de um filho e a morte do marido, além de outros tantos conflitos e batalhas. Enquanto tantos se deixariam derrubar, ela não se permitia tal atitude, mas tratava de transformar dor, sofrimento e amargura em carinho, abnegação, disposição de ajudar, solidariedade com quem precisava mais, partilhando amor como ninguém.
Foi na convivência oportunizada, em 2009, pelo acompanhamento das semanas derradeiras de agonia e morte da minha mãe, que tive contato mais sistemático e intenso com a tia Lúcia. Ela, sempre solícita, fechou a própria casa e se deslocou, “de mala e cuia”, segundo expressão que ela usava na época, para auxiliar-nos a cuidar da minha mãe, que era irmã dela.
Naqueles momentos de conversa, fui apresentado a um grande ser humano, a uma mulher com palavras firmes e sem rodeios, mas com gestos generosos e encantadores, porque dotados de muita doçura, alegria e bom humor, expressões simples do que pode ser a felicidade, em seu mais puro, natural e espontâneo acontecer. O “endurecer-se, sem perder a ternura jamais”, que atribuem a Guevara, passou a ter para mim um sentido prático na trajetória e nas atitudes daquela mulher, a minha tia Lúcia.
Descobri, pois, que pessoas de vida simples e sem grandes projetos ou ambições, assim como você o era, são capazes de transformar o mundo, por compreender que a felicidade pode ser obtida em pequenos momentos e em coisas corriqueiras, desde que descubramos nelas um significado e as olhemos com a grandeza de espírito necessária a quem ama.
Num mundo tão complexo, onde a velocidade, a pressa, a agitação e a celeridade ditam os comportamentos, as coisas, os fatos e as pessoas só conseguem chamar a atenção ou deixar marcas por alguns instantes, de maneira efêmera, e já são superadas pela novidade do momento seguinte.
Assim, possivelmente continuaremos tocando a vida e tentando amenizar a dor da sua partida. Mas saiba, tia Lúcia, onde quer que você esteja, que deveriam aprovar uma lei proibindo algumas pessoas de partir, e você seria incluída nesse rol. Isso porque estas pessoas, e também se aplica a você, são cruciais para que a humanidade ainda tenha alguma esperança de não ser aniquilada, pessoas cujo caráter, honra, solidariedade, humildade, ternura e altruísmo nos servem de bálsamo e alento diante das agruras, pessoas que apontam para um futuro, por mais que eles pareça improvável,  e que desafiam ainda a manutenção de esperanças num mundo melhor.
Quando nos despedíamos, para lhe provocar, eu sempre dizia a você, em alemão, para se comportar e ter juízo, algo que a vó Cecília me dizia quando morou conosco. Você dava uma risada e retrucava dizendo que eu é que devia me comportar e ter juízo. Pois bem, nesta hora eu só posso resumir a minha dor e a minha saudade com esta frase de despedida:
Comporte-se e juízo, hein, tia Lúcia!
Descanse em paz!