28 de fevereiro, apenas uma data no calendário. Mas
como o calendário é um constructo humano, cada pessoa traz em si a
possibilidade de significação e ressignificação do tempo, dos dias, do
calendário. Os planetas, as estrelas, as constelações, as marés, as rochas e as
plantas não têm a percepção do tempo e não o organizam, ainda que estejam
inseridos no fluxo tocado pelo deus Cronos (Κρόνος). Nós, seres humanos,
ousamos sentar no trono de Cronos e pretendemos controlar o tempo, organizá-lo,
driblá-lo, ultrapassá-lo.
28 de fevereiro, dia importante na minha percepção e
na minha ótica do tempo, pois me remete a pensá-lo em termos de vida e morte, a
partir de três momentos ou situações.
Momento 1 – Em âmbito mundial,
a renúncia de Bento XVI
Após oito anos de Pontificado, Bento XVI surpreende o
mundo e renúncia ao cargo supremo da Igreja Católica e à chefia do Estado do
Vaticano, algo raríssimo na trajetória de quase dois milênios de cristianismo
(somente ocorreu três vezes, sendo a mais recente em 1415, com Gregório XII).
Como compreender o gesto de Bento XVI? O que levou o homem Joseph Ratzinger a
abrir mão de tamanho poder e responsabilidade para decidir-se pelo
recolhimento, aos 85 anos, à vida monástica, de escritos e orações?
Cansado, desiludido com a corrupção, com os escândalos
sexuais e com a mentalidade estratégico-instrumental daqueles que estão mais
próximos ao poder na Instituição eclesial, o velho Pontífice assume um gesto
dramático, de auto-imolação, sem corpo rijo, mas ainda assim tanática. Lincoln,
Getúlio Vargas, Allende, foram estadistas que tiraram a vida para marcar, com
sangue e morte, o prenúncio de uma nova vida, na expectativa de que o gesto de
sacrifício fosse o gerador de um despertar de todos os seus para uma nova
ordem, para uma nova era, superando as amarras de um contexto que julgavam
intransponível pelas vias normais da política. E com Ratzinger não parece ser
diferente.
Ratzinger foi o protagonista e o articulador de boa
parte da história recente da Igreja Católica: a) Sua atuação como teólogo,
comandando a Congregação para a Doutrina da Fé, versão contemporânea da
Inquisição, arrefeceu o ânimo, a articulação e a expressão mundial de
movimentos como a Teologia da Libertação, reduzindo o ímpeto do modelo
político-organizacional desta, as Comunidades Eclesiais de Base. Quem não se
lembra do então padre e teólogo brasileiro Leonardo Boff, proibido pelo Cardeal
Ratzinger de qualquer manifestação pública por anos em face das idéias que
apresentava no livro que escreveu (Igreja,
carisma e poder). Isso significou uma guinada para uma postura dogmática e
conservadora na Igreja Católica a partir de meados da década de 1980,
desencantando aqueles cristãos que acreditavam no aprofundamento das reformas
iniciadas com o Concílio Vaticano II, na década de 1960. Movimentos
carismáticos, conservadores, baseados no vetor de um ritualismo piedoso e
emotivo, proliferaram pelo mundo a partir de então, ao invés do cristianismo
engajado na transformação social e no combate às injustiças e à exploração
humana.
b) A força do convencimento pela palavra, a
consistência na discussão dos temas teológicos, a discrição e comedimento nos
movimentos, a habilidade de articulação política, todas estas foram
características que tornaram Joseph Ratzinger influente no processo de eleição
de Karol Wojtyla como João Paulo II. Permitiram também que, aos poucos, ele
fosse se tornando balizador do discurso do então Papa, de saúde já combalida
pelos efeitos do atentado que quase o matou e das complicações advindas disso e
do avançar da idade. Atento observador do cenário, Ratzinger percebeu o quanto
João Paulo II ficou vulnerável e suscetível ao domínio do establishment que gira em torno do Vaticano, que usou o velho
Pontífice polonês e o carisma amealhado por este junto à comunidade mundial e
aos fiéis para fazer valer seus interesses, nem sempre dignos de louvor, por
vezes até espúrios, seja via Banco do Vaticano, seja em países onde este grupo
tinha razões para atuar ou objetivos específicos a atingir.
c) Ao longo do Pontificado de João Paulo II, Ratzinger
pavimentou sua condução ao papado, ao influenciar na indicação de novos Bispos
e Cardeais que estavam alinhados com seu pensamento teológico e que o tinham
como referência intelectual e moral. Tal como um hábil artista, como o
Michelangelo a esculpir Moisés,
Ratzinger moldou o Colegiado de Cardeais que, com a morte de João Paulo II, o
elegeu Sumo Pontífice. Oito anos se passaram e este Colegiado, porém, já está
envelhecido, até mesmo para apoiá-lo significativamente ante os reveses da
política vaticana e da luta nas entranhas do poder romano; muitos destes Cardeais
sequer reúnem condições formais de participarem da escolha do próximo Papa,
pelo avançado da idade.
d) Diante deste cenário e vendo que poderia repetir o papel de João Paulo II, tornando-se instrumento de operacionalização dos projetos e interesses de alguns Cardeais da Cúria Romana, ávidos pelo poder e pelas benesses que este confere a quem o detém, Ratzinger mais uma vez surpreende pelo brilhantismo político. Imolando-se politicamente, ele abre espaço para um destes caminhos: ou esse grupo de poder paralelo do Vaticano sai das sombras e faz um candidato próprio, arcando com o ônus político de uma tomada direta do poder papal, pelos compromissos e acordos necessários para conseguir os votos suficientes; ou então esse grupo será substituído por novas e diferentes forças emergentes nas periferias da Igreja Católica; há ainda uma terceira possibilidade, de busca de um nome conservador, capaz de tolerar os abusos dos primeiros, coisa que Ratzinger não mais suportou, e de permitir maior espaço político aos últimos, algo que Ratzinger não conseguia realizar, ante suas convicções de fundo teológico. Antes de sair, porém, Ratzinger tratou de coibir alguns desmandos e interesses deste grupo de poder paralelo, afastando pessoas da cúpula do Banco do Vaticano, do corpo diplomático e da própria Cúria Romana; mexeu peças para facilitar candidaturas e para tornar menos fácil o advento de outras candidaturas a sua sucessão; foram trinta dias em que capitalizou a admiração de alguns, proporcional ao número de poderosos inimigos que arrumou. Nos últimos movimentos da partida, as cartas foram internamente mostradas e conhecidas; as composições e alianças já estão sendo construídas. O Conclave marcará a rodada derradeira desta partida; mas outras partidas serão jogadas pelo novo Pontífice. O grão morre para que dele surja a nova planta e, nesta transmutação que ocorre no tempo e no espaço, morte e vida se completam, se necessitam, se possibilitam. A quebra do anel, a retirada da sapatilha vermelha: morre um Papa, renasce um homem, que se tornou grande ao desdenhar do poder terreno, meta obcecada de muitos dos que o rodeavam, para recolher-se ao anonimato e à discrição de livros e escritos. Auf wiedersehen, Bento XVI; vá em paz, Joseph Ratzinger. 28 de fevereiro, o ocaso de um Pontificado, a possibilidade de uma vida nova.
Momento 2 – Em âmbito local, o resultado do Mestrado
O Programa de Pós-Graduação no qual atuo realizou seleção de Mestrado ao longo das últimas duas semanas, que culmina com o resultado a ser divulgado hoje, 28 de fevereiro de 2012. No cenário das provas escritas, vi pessoas com rostos esperançosos, com gestos nervosos, com expressões de aflição e de angústia; e esse cenário foi se repetindo ao longo das demais etapas (Prova de Língua Estrangeira, Entrevista). Dos quase cem candidatos postulantes a pouco mais de trinta vagas, muitos ficaram pelo caminho e outros se defrontarão com a situação, hoje, de terem chegado à última etapa, mas não conseguirem a aprovação.
Em cada rosto que vejo, em cada pessoa que entrevisto ou avalio, percebo sonhos, planos, desejos, expectativas, razões que as moveram na empreitada de investir tempo, dinheiro, energia, vida, na busca de uma oportunidade de continuar seus estudos em nível de pós-graduação numa Instituição Pública. Cada um destes atores com os quais interajo durante o processo seletivo se encontra em nível próprio de caminhada, de maturidade intelectual, emocional, profissional, humana. Muitos deles, dadas às contingências existenciais e à correria nas quais estão imbricados, talvez sequer se apercebam da própria condição ou situação. E quiçá nós mesmos, os docentes que os estamos avaliando, sejamos juízes-penitentes, como dizia Albert Camus, pois quem sabe estejamos na mesma situação de dificuldade de autocompreensão do nosso dasein, do nosso ser ou estar no aí do mundo.
A sensação de dor, de decepção, de raiva, de indignação, de incompreensão, em suma, de morte, que pode brotar do insucesso num concurso como este é grande. Isso porque, quando somos avaliados e não aprovados, instaura-se uma gama de sentimentos nem sempre claros. Sentimo-nos rejeitados, impotentes, desvalorizados, porque de algum modo a visão que temos do mundo e de determinados problemas existentes na sociedade foram colocadas em xeque, o projeto que pretendíamos desenvolver não foi considerado relevante, o conhecimento que temos acumulado sobre determinada área da sociedade não se mostrou suficiente para garantir a continuidade de uma caminhada, os argumentos que julgávamos consistentes não bastaram para conquistarmos uma vaga. Nossa trajetória de vida, rica em experiências e aprendizados existenciais, acaba pulverizada sob os parâmetros frios e técnicos de pontuação curricular ancorados nas diretrizes das Instituições governamentais de avaliação da Pós-Graduação.
E diante das dificuldades que enfrentamos para compreender os textos dos autores indicados para a seleção, do esforço hercúleo que nos é impingido na tradução exigida na prova de Língua Estrangeira, do domínio prévio de autores especializados na temática que escolhemos como projeto de pesquisa, nossa sensação é de insuficiência. Quantas vezes, socraticamente, nos vemos na dura impressão do “só sei que nada sei”. Lembro-me vivamente de uma situação na qual, preterido numa seleção similar a esta, sentia-me sem chão, sem perspectiva, com a percepção de que fiz muitas coisas na vida, que gastei tempo e envelheci, mas que isto não foi o bastante para preencher as lacunas na minha formação. E aí vem uma espécie de melancolia pelo tempo perdido, pelos livros que não li, pelas palestras que não assisti, pelos idiomas que não aprendi, pela maturação que eu julgava existir, mas que não foi reconhecida pela alteridade, por aqueles que, num dado contexto, estavam me avaliando. Que dor! Que gosto amargo! Que decepção! O que dizer aos amigos, aos colegas de trabalho, aos familiares, aos que torciam por mim? Há uma mortificação em cada reprovação, em cada insucesso, em cada fracasso, em cada queda.
Mas o mundo não acaba em 28 de fevereiro. Nietzsche dizia que o que não nos mata nos torna mais fortes; e da sensação de mortificação surge o combustível para a vida nova – esta é a base das utopias que movem a espécie humana ao longo da história. Utopia (οὐ-τόπος) é tomada por alguns como “não lugar”, inexorável, intransponível, inamovível. Mas para os que fazem história, para aqueles que acreditam firmemente que não vieram ao mundo a passeio, apenas para ocupar burocraticamente um espaço no planeta, utopia significa “não lugar ainda”, e implica que é possível construir as condições objetivas para fazer com que algo novo aconteça, desde que nos movamos e esforcemos nesta direção.
Encontrei, neste ano, pessoas que participaram de outras seleções e que retornaram; algumas delas tiveram êxito e, nos casos em que se tratava de candidatos inscritos na Linha de Pesquisa onde atuo, percebi que tais pessoas chegaram mais maduras, com foco, superando deficiências reveladas em outros concursos, melhorando o currículo, com proficiência maior de língua estrangeira, com prova escrita melhor elaborada. É a fênix em seu ressurgir, é a morte tornando-se vida mais vigorosa. Aos que não obtiveram sucesso neste ano, coragem, força e auto-superação; aos que atingiram seu objetivo, que percebam ser este um começo de caminhada e que aprendam a manter a atitude da busca pelo aperfeiçoamento.
Momento 3 – Em âmbito pessoal, o aniversário de um anjo de luz
28 de fevereiro de 1941. Em plena II Guerra Mundial, nasceu num lugarejo recôndito do sul do Brasil uma pessoa que trazia dentro de si um dom, revelado a todos ao longo de um curto período de vida terrena, que se interrompeu em 15 de novembro de 2009, em face de um câncer agressivo e raro: seu nome era Teresinha Lori, ou simplesmente Lori. O dom que ela tinha era uma capacidade de trazer luz aos ambientes nos quais passava e à vida das pessoas que com ela conviviam. Sempre solícita, jamais dizendo não aos pedidos por ajuda ou atenção, esta mulher semeou vida por onde passou. Seus exemplos, suas palavras, sua discrição, seu jeito simples de ser, seu senso de justiça e de equidade, foram irradiados a todos os que tiveram o privilégio da sua convivência. Mesmo nos momentos de maior dor e sofrimento, já perto de sua morte, ela era capaz de uma palavra de consolo a nós, como que a prenunciar sua partida. E dias antes de partir, no último momento de lucidez que a natureza lhe conferiu, ela se despediu de todos, dizendo que gostava de rosas vermelhas e que queria ser envolta com um manto de rosas quando partisse; e sua vontade se fez. Ela era uma mulher que tinha sua fé cristã e que acreditava na possibilidade do paraíso. Quando penso nela, imagino que, se houver um paraíso, ela se transformou num anjo de luz e foi habitar junto a um cantinho semelhante a este retratado no vídeo abaixo; e se não houver paraíso, se tudo for matéria e átomo, certamente os seus átomos migraram para este lugar e estão conectados a esta ilha.
Este anjo de luz completaria hoje 72 anos; e a saudade que a sua
morte deixa, e a força de vida que ela desperta em mim para continuar vivendo,
apesar das agruras, faz com que eu compreenda que a frase “nada como o tempo
para superar a ausência” não tem o menor sentido. Espero sempre estar à altura
dos seus ensinamentos e honrar a sua trajetória de luz. Feliz aniversário,
Lori, onde quer que você esteja, qualquer que seja a forma como esteja. Grato
por tudo, mãe.